O Globo
Aproveitando que o ano
político ainda não começou, gostaria de convidar o leitor a refletir sobre um
assunto controverso da nossa vida cultural: o aplauso de pé. Quem frequenta o
mundo dos espetáculos certamente conhece a regra implícita de etiqueta: depois
da apresentação, não importa a qualidade do que foi entregue, o público aplaude
de pé. Não aplaudir, ou apenas aplaudir sentado, é visto como rude, muito rude.
Peças horrorosas, que se tornaram fracassos retumbantes, são invariavelmente aplaudidas de pé. Antes, o público graduava sua resposta. Ia do aplauso curto e protocolar, passava pelo mais detido e chegava ao entusiasmado. Apenas quando algo realmente extraordinário e singular tivesse acontecido, o público oferecia o aplauso de pé, recebido pelos artistas como manifestação de reconhecimento e distinção por um trabalho excepcional. Quando e por que perdemos esse importante senso de proporção?
O aplauso de pé se
consolidou socialmente como mero gesto de urbanidade e respeito com os
artistas, como se disséssemos:
— Eles se dedicaram por
meses àquele espetáculo, por isso merecem o reconhecimento do público!
Mas esse gesto
condescendente e indulgente não faz bem para os artistas e certamente não faz
bem para as artes. O público precisa expressar com franqueza sua avaliação do
espetáculo, porque o desenvolvimento das artes depende do exercício do juízo de
gosto.
Os espetáculos estão
inseridos num sistema de julgamento e depuração estética que começa nas escolas
de formação, passa pelo sistema de financiamento, pela curadoria dos circuitos
de apresentação, pela crítica nos jornais e na academia e termina com a resposta
do público. Vários desses elos estão corrompidos, e a ausência de gradação na
resposta do público é apenas o mais visível.
O desenvolvimento da
economia dos espetáculos, nos últimos anos, fez com que a maioria das
apresentações de teatro, de dança e da música de concerto seja financiada com
recursos públicos, via editais de fomento ou leis de incentivo, como a Rouanet.
Esses mecanismos financiam toda a produção dos espetáculos, que deixam de
depender da bilheteria. Se isso, por um lado, os “protege” da pressão do
mercado, que pode ser cruel, por outro desincentiva os artistas de perseguir a
satisfação do público.
O problema é acentuado pelo
desaparecimento ou enfraquecimento das críticas rigorosas e independentes nos
jornais, que faziam a mediação entre o mercado dos espetáculos e o público.
Esse sistema, com problemas em vários elos, tem estimulado espetáculos ao mesmo
tempo prepotentes e preguiçosos, que escondem sua pobreza estética e sua
debilidade técnica atrás de um discurso pretensamente vanguardista, antimercado
e ativista.
O desestímulo a conquistar o
público faz também com que alguns circuitos, como dança e teatro, sejam
extremamente endógenos, compostos majoritariamente de outros artistas,
praticantes amadores e seus amigos. Pode ser que essa composição do público,
socialmente próxima dos artistas, seja um dos motivos de agora aplaudirmos
qualquer bobagem de pé.
Deve haver, porém, outros
motivos, de ordem mais geral, relacionados com tendências culturais mais
profundas. Há alguns anos, críticos nos Estados Unidos têm reclamado que o
público por lá também se tornou condescendente, com o aplauso de pé se tornando
regra. Alguns argumentam que a difusão da televisão e o aumento no preço dos
ingressos fizeram com que a experiência dos espetáculos fosse sentida como mais
onerosa, em tempo e em dinheiro, estimulando o público a exagerar na resposta
para fazer valer seu próprio esforço.
Seja como for, não é uma
tendência universal. Na Europa Ocidental e na vizinha Argentina, a resposta do
público aos espetáculos ainda é bastante graduada, com o aplauso breve,
sentado, sendo ainda a reação padrão. Não por acaso, a qualidade de seu circuito
de espetáculos é substancialmente melhor que a do Rio ou de São Paulo.
Precisamos enfrentar o
constrangimento social que nos impede de aplaudir sentado ou mesmo de não
aplaudir. Quando vamos a um espetáculo, temos o dever de transmitir aos
artistas nosso juízo sobre aquilo que acabamos de ver. Essa é nossa função
social, nossa função estética, além de ser nosso direito, como consumidores.
Antes de encararmos o aplauso como etiqueta ou como bons modos, devemos pensar
no papel que desempenhamos em nosso sistema quebrado, que tem rebaixado a
qualidade das nossas artes do espetáculo.
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