sábado, 4 de janeiro de 2025

A polarização como doença social – Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo

Nosso problema não é a polarização do discurso dos políticos, mas a esmagadora polarização social

Viradas de ano são intervalos dedicados a mensagens aspiracionais utópicas. Ninguém as leva a sério, inclusive seus autores. Previsivelmente, este 2025 começou com o chamado, dirigido aos políticos, pelo fim da polarização. A súplica não será atendida —mas, de qualquer forma, erra o alvo.

O discurso polarizador tornou-se estratégia política: um cálculo frio sobre ganhos eleitorais. Não é de agora. "Nós contra eles" forma uma gramática da política populista desde o século 19. O PT a exercita há décadas –e chegou ao poder nas suas asas. Bolsonaro e os seus a conduziram até um ápice, na tentativa de preparar a ruptura da ordem democrática. Nenhum dos campos rivais desistirá da ferramenta, ao menos enquanto ela produzir os resultados almejados.

O ponto relevante é outro: a contaminação das relações sociais pela polarização que percola da superfície partidária. Ilustração didática: os comentários de leitores à notícia sobre as ameaças de um policial contra a jornalista Natuza Nery num supermercado paulistano. Há, claro, uma maioria que, constatando o óbvio, solicita a punição do agressor. Contudo, refletindo uma doença social, sobram os praticantes de fuzilamentos simbólicos.

Na defesa do policial delinquente, emergem expressões como "ratos vermelhos" e "ratos corruptos", versão bolsonarista do "gusanos" castrista. Um valente chega a escrever que, diante de um jornalista da Globo, faria "o mesmo que esse policial". Em linha similar, mas simulando condenar a agressão, alguns opinam que, na condição de figura pública, a jornalista fica "sujeita a esse tipo de importunação".

O "outro lado", digamos assim, sai-se melhor –mas nem tanto. Dele, emana o mais clássico chavão, "nazifascismo", aplicado genericamente a rivais políticos de Lula. Hitler, nada menos. No auge do delírio, saudoso do "controle social da mídia", um pensador profundo declara que "a Folha de S.Paulo é culpada por isso" pois "alimenta a direita" e "sempre foi neonazista".

De acordo com um clichê, a sociedade brasileira nunca foi tão "politizada". De fato, é o contrário. A febre de proclamações políticas obtusas que escorrem pelas redes sociais e contaminam as conversas cotidianas, no bar ou à mesa de jantar, evidencia o fenômeno da despolitização social.

Hannah Arendt percebeu que um traço singular do totalitarismo encontra-se na colonização das instituições sociais e da vida privada pela política. "Tudo é político!" –o lema compartilhado por extremistas de direita e esquerda, pregadores religiosos e militantes identitários foi inventado pelos regimes consagrados ao extermínio radical da divergência política.

O sistema democrático caracteriza-se, em tempos normais, pela segregação da política aos processos eleitorais e às manifestações reivindicatórias. As pessoas esperam que o governo administre as coisas, fugindo à tentação de administrar as mentes. Votam, às vezes protestam nas ruas. Fora disso, querem que os políticos as deixem em paz, com seus amigos e afetos, seus hobbies e suas diversões.

Nosso problema não é a polarização do discurso dos políticos, mas a esmagadora polarização social. Ou, dito de outro modo, a despolitização radical do discurso político das pessoas comuns. Tempos anormais. Feliz 2025.

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