terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Natal da saudade - Xico Graziano

Recordo-me, nesta véspera do Natal, quando minha família, acompanhando a maioria dos brasileiros, deixava o campo rumo à cidade. Começava há 50 anos a modernização da sociedade brasileira. Menino ainda, em Araras (SP), ansiosamente aguardava pela chegada do Papai Noel. Não havia, como agora, uma festança. O evento natalino tinha caráter mais religioso, a ceia era secundária. Obrigatório era assistir, quase adormecido, à Missa do Galo, rezada em Roma, pelo papa, à meia-noite. Inesquecível reza do padre-nosso.

Minha curiosidade infantil se atiçava dentre os festejos cristãos. Eu não entendia, nem nunca alguém me explicou, o que o galo tinha que ver com o Natal. Muito tempo depois, estudando o folclore caipira, descobri as várias versões dessa celebração do nascimento de Jesus. Dizem uns que o cantar do cocoricó, anunciando o amanhecer, se assemelha à chegada do Cristo, qual sol nascente iluminando a escuridão pagã. Outros afirmam que, instituída no século V, a missa deve-se ao forte cantar de um galo na celebração da Eucaristia, comemorando a vinda do Messias. Vai saber.

Cenário meio em desuso atualmente, encantava-me o presépio. Naquela época, passávamos horas montando e curtindo aquelas peças, consideradas abençoadas, centralizadas em torno do menino Jesus deitado na manjedoura de palha tendo ao lado seus pais, a Virgem Maria e José. Filhos e netos de agricultores, nós nos identificávamos com a família sagrada postada no celeiro, perto do curral, junto do burrico, o boi e as ovelhas, sob o olhar zeloso dos pastores e seus cajados. O presépio de Natal dava liga com nosso mundo rural.

Ninguém sabia, ou não se dizia, que o primeiro presépio surgiu na floresta de Greccio, na Itália de 1223, com o objetivo de explicar às pessoas mais simples o significado do nascimento de Jesus Cristo. Grande ideia pedagógica de São Francisco de Assis. Fascinava-me, no casarão colonial de minha avó Anaitis, bem ali no centro da cidade, observar os anjos anunciadores rodeando aquele cenário sacro iluminado pela grande estrela de Belém, sempre colocada em destaque, ao alto, indicando o caminho aos três reis magos, figuras de que nunca lembrávamos os nomes (Melchior, Baltazar e Gaspar). A representação da simplicidade do nascimento de Jesus, carregada por tantos simbolismos, formava um quadro teatral por onde nós, crianças, viajávamos ao beijar cuidadosamente, com reverência, tantos personagens de uma verdadeira fábula. Isso era Natal.

São recentes a comilança e a bebedeira que agora caracterizam a ceia natalina. Antigamente, o jantar se fazia mais simples e a leitoa assada, ou seu quarto traseiro, não o peru, dominava normalmente o cardápio principal. Mas para meu avô Chico, calabrês de origem, a data ímpar exigia ademais um cabrito ensopado na mesa. Além - típico nas famílias de descendência italiana - do vinho servido junto com o pão. Na ceia de meus parentes havia ainda uma particularidade: costumava-se cortar pedaços de pêssego, importado, pois por aqui ainda não se produziam frutas temperadas, colocando-os dentro da taça para perfumar a bebida, o que arroxeava a polpa da fruta. Supimpa.

Inexistia panetone, tal como o conhecemos atualmente. O pão de Natal, feito em casa, era especialmente trançado, recheado algumas vezes com frutas e nozes, mas não tinha esse formato próprio dos panetones modernos. Enquanto os adultos conversavam, a molecada aguardava ansiosa a hora de receber presentes, os maiores liberados para tomar a sangria, vinho diluído em água que nos fazia sentir gente grande. Imaginem, outrora, adulto receber oferendas do Papai Noel. Nem pensar. Os mimos somente cabiam às crianças. Por essa razão, ganhávamos presentes de toda a parentada, saindo abarrotados para ir dormir felizes. Com olhos abertos, eu sonhava com a neve do trenó.

Quase tudo mudou no Natal. Com a urbanização crescente, a industrialização e o fortalecimento do comércio, os costumes e as práticas foram se alterando. Começa que os presentes se estenderam para todos, independentemente da idade. Em decorrência, decerto para economizar, inventou-se essa brincadeira do "amigo secreto", equiparando no agrado as crianças com os adultos. Influenciada principalmente pelo modo de ser norte-americano, dominante no mundo ocidental, a sociedade brasileira começou a adotar, também no Natal, manias do estrangeiro. Apareceu o peru.

Sempre foi costume, na América do Norte, comer o grande galináceo no Dia de Ação de Graças, quando por lá, historicamente, eles comemoram o sucesso das suas colheitas e o brilho de seus negócios. Introduzido no Natal brasileiro, o peru desbancou a leitoa caipira abusando do argumento culinário de ser uma carne mais saudável que o gorduroso porquinho criado no sítio. Ainda jovem me lembro de meus parentes mais velhos, embora fascinados com a visão charmosa do peru esticado com as pernas para cima sobre a assadeira, reclamando do gosto insosso de sua carne de peito branca. Bom mesmo, afirmavam, era o couro pururuca da leitoa, assada no forno à lenha. Delícia.

Depois, em meados dos anos 1980, chegou o chester, que muitos imaginam ser cruzamento do peru com o frango, mas, na verdade, trata-se do nome comercial de uma linhagem melhorada de aves grandes, origem escocesa. Pernas pequenas, peitoral enorme, macia carne, bom e barato, o bicho vingou. Como a lichia, fruta chinesa. Exóticas novidades passaram a compor a ceia de Natal, apetitosos importados invadiram a mesa, misturando-se com os quitutes tradicionais. O gosto da fartura se diluiu. A religiosidade quase desapareceu.

Nem melhor nem pior. Apenas diferente.

Feliz Natal e bom ano-novo!

Agrônomo, foi secretário de agricultura e secretário do meio ambiente do estado de São Paulo.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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