"Permitam-me dizer". A presidente Dilma Rousseff pedia licença aos seus ouvintes na assembleia anual das Nações Unidas para a contundência da afirmação que se seguiria: os líderes dos países desenvolvidos ainda não encontraram uma solução para a crise "por falta de recursos políticos e clareza de ideias".
Dias antes, num seminário de militantes de esquerda em São Paulo, um dos economistas mais influentes que orbitam o Palácio do Planalto, em linguagem que julgou mais afeita à plateia, e sem aposto, fez mais ou menos a mesma provocação: "O mundo é governado por idiotas".
À Assembleia da ONU Dilma se disse portadora de uma clarividência - a de que a crise financeira exige uma coordenação política dos instrumentos fiscais e monetários -, mas reconheceu que a aposta que fez no Brasil tem limites se a governança mundial não aprofundar a regulamentação do sistema financeiro. Ou, como diria seu amigo economista, se os ricos não deixarem de fazer idiotices.
Dilma tenta legitimar mandato que ainda é creditado a Lula
O discurso de Dilma, mais do que momento simbólico de sua investidura na Presidência, revela a aposta de altíssimo risco que a presidente fez ao impor mudanças aos rumos das políticas fiscal e monetária.
Se bem-sucedida, a política iniciada com vistas a tirar o país da condição de imbatível campeão mundial dos juros altos, só guarda relação em impacto para a economia brasileira com o Plano Real.
A estabilidade da moeda apoiou-se nos juros, na abertura da economia e no controle dos gastos públicos para combater a inflação. À crescente autonomia do Banco Central para perseguir a meta de inflação seguiu-se o esvaziamento, na mesma medida, do raio de ação de partidos, governadores, industriais, sindicalistas.
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva deu-se sob o pacto de que uma renda mais bem distribuída não colocaria em risco a centralidade da meta de inflação. Com um mandato sob ameaça pelo mensalão, Lula afrouxou os nós da política e começou a dar mais gás ao crescimento e à geração de emprego. Como tinha facilidade em açambarcar sua audiência, manteve os ruídos sob controle. Veio a crise de 2008, e a política de redução de juros que havia sido posta em curso foi revertida.
Ao tentar mudar o paradigma da economia brasileira e realizar aquilo o que Lula não foi capaz, Dilma tenta legitimar um mandato cuja conquista é creditada na conta de seu antecessor.
Lula parece sincero nas reiteradas afirmações de que deseja a reeleição de sua sucessora. Nenhum presidente saiu do governo de maneira tão consagradora. A história pode até não se repetir como farsa, mas até Lula teria dificuldade em se superar.
O problema é que os aliados governistas legados por Lula não se cansam de demonstrar sua autonomia em relação à eleição de 2014. Não bastassem os saudosistas do lulismo que tomam conta do PT, do PMDB e adjacências, a população quando consultada (pesquisa do Instituto Análise no Valor de 20/9) também é, por folgada maioria, favorável a que o ex-presidente tome o lugar de Dilma na disputa.
A sucessão está, sim, longe demais para prognósticos tão definitivos. Mas os saudosistas têm a seu favor a mística de Lula que o tempo custa a apagar. É a expectativa de poder que alimenta a política. E Lula é uma reserva garantida para essas expectativas.
Dilma só será páreo para o mito se seu governo for capaz de liberar para investimentos maciços na grande chaga social brasileira - educação e saúde - os recursos hoje canalizados para o serviço da dívida. Não por acaso se costuma considerar como as grandes armadilhas de seu governo a emenda que fixa os percentuais mínimos de gastos na saúde e a política nacional que eleva as despesas com educação, ambas em tramitação no Congresso.
Há muitos adversários com quem ainda resta combinar para que a aposta de alto risco de Dilma dê certo. A volatilidade cambial que tomou conta do mercado é apenas a evidência mais imediata de que além de "idiotas", o mundo é governado por interesses. Ao demonstrar que o Banco Central é independente do mercado, sinaliza-se que o compromisso da atual política monetária com o crescimento pode ter uma rentabilidade menos imediata para o capital especulativo que vinha sendo atraído para o país.
Por outro lado, apostas do governo como a política industrial não têm tido apoio suficiente para contrabalancear o equilíbrio do poder. A opção deste governo pelo fortalecimento da indústria nacional se traduz numa cesta que soma BNDES, os incentivos do "Brasil Maior" e um Plano Plurianual que assume a meta de internacionalizar 30 empresas manufatureiras. Aposta-se que a política industria é o eixo para o fortalecimento do mercado interno e do desenvolvimento tecnológico de uma maneira ainda mais aguda do que já vinha ocorrendo no governo Lula.
São opções que distanciam Dilma do que foi o governo Fernando Henrique. Parece paradoxal que busque se aproximar politicamente do ex-presidente tucano. Mas não o faz apenas porque reconheça seu papel na história. Para a mudança de paradigma que realizou na economia, Fernando Henrique montou uma coalizão política que foi rearranjada, sob o comando do PT, pelo governo lulista.
Para dar conta do risco que resolveu tomar, Dilma terá que dar conta de todas as frentes que abriu: a valorização do salário mínimo, a ampliação dos programas sociais e a vasta gama de incentivos fiscais.
Precisará rearranjar também a base política que a elegeu, incorporando setores da sociedade que votaram no PSDB. Um câmbio apreciado e medidas como a elevação do IPI para carros com baixo índice de nacionalização podem vir a lhe custar o apoio de parte da classe média tucana e daquela que ascendeu no governo Lula e que, por isso, votou em sua candidata.
Numa passagem do discurso que escreveu para a história, a presidente diz que coragem, em português, é uma palavra feminina. É dela que precisará para enfrentar a guerra, outra palavra feminina, que decidiu travar sem que esteja claro, no momento, quem são seus aliados - vocábulo masculino.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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