Às
fomes antagônicas do MST e do diretor da FAO contrapõe-se uma terceira: a da
menina sudanesa fotografada enquanto um abutre ao lado esperava sua morte
Na
perspectiva maniqueísta que domina hoje as formas vulgares do pensamento social
existe a fome da esquerda e existe a fome da direita. Na esquerda, a fome se
mata com reforma agrária e preservação de costumes agrícolas tradicionais das
populações camponesas, verdadeiro capital cultural que a Revolução Verde jogou
no lixo. Na direita, a fome se mata com o agronegócio, a concentração da
propriedade e a modernização tecnológica da agricultura em grande escala,
substituindo trabalhador por máquina, fertilizante e agrotóxico. Na esquerda, a
agricultura familiar mata a fome dos famintos. Na direita, a agricultura
extensa mata antes a fome do mercado. É possível estender a ladainha por um
grande número de itens comparativos sem saciar a fome política de nenhum dos
dois grupos nem, principalmente, fazer com que o pão nosso de cada dia chegue
de fato ao prato raso dos famélicos da terra.
A
polarização retornou à pauta dos assuntos pendentes no correr dessa semana. O
MST, e o grupo de entidades que em torno dele se articula, soltou um manifesto
em que questiona, com indignação e medo, dizem, artigo publicado no Wall Street
Journal por José Graziano da Silva (o brasileiro que é diretor-geral da FAO -
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) e Suma
Chakrabarti (o indiano que é presidente do Banco Europeu de Reconstrução e
Desenvolvimento). O artigo tem o título provocativo de Fome por Investimento e
o subtítulo, mais provocativo ainda, de O Setor Privado Pode Dirigir o
Desenvolvimento Agrícola em Países que mais o Necessitam. Provocativo para quem
vê o assunto da perspectiva do calor úmido de um barraco de acampamento de
sem-terra, mas que de fato não lê o Wall Street Journal senão através de
intermediários que não passam necessariamente fome. No entanto, desafiador e
instigante para quem vê o assunto com óculos de cifrões no conforto de um
escritório bem mobiliado e ar condicionado de Wall Street.
Quem
lê o manifesto do MST tem a impressão de que, em Roma, o petista José Graziano
não tem outra coisa a fazer senão maquinar a demolição das propostas
ideológicas da entidade que o julgava amigo, o que ele é. Quem lê o artigo
publicado no jornal das altas finanças internacionais tem a impressão de que o
intuito de seus autores é bem outro: o interlocutor não é o MST nem o MST está
nos horizontes de quem publica artigo nas páginas especializadas em economia do
Wall Street Journal.
A
comparação entre os dois documentos mostra claramente que Graziano e
Chakrabarti falam de uma coisa e o MST fala de outra. O medo do MST é a
subjacente doutrina do favorecimento do agronegócio na ocupação das terras
agrícolas do mundo. O medo de Graziano e Chakrabarti é o de que as urgências
das crises internacionais, provocadas pelo capital especulativo, minimizem
ainda mais a FAO e seu já claudicante papel no desenvolvimento econômico. Se há
tensão política nas crises tópicas recentes na Europa, há também tensão
política na crise crônica das populações agrícolas, em especial no Terceiro
Mundo.
A
terceira via de Graziano e Chakrabarti é, sem dúvida, a de atrair o grande
capital para a agricultura nos países que dispõem de extensos territórios
férteis em desuso ou usados em cultivos arcaicos e ineficientes. O apelo dos
dois autores, tendo em conta os poderes que representam, se baseia no primado
da produtividade lucrativa. Por essa via, haveria produção, exportação,
emprego. Haveria, também, melhora nas condições de vida dos agricultores. Como
tudo que se orienta para a terceira via, o artigo é confuso e escamoteia
questões essenciais. A camisa de 11 varas de Graziano já ficara exposta na
entrevista que deu à revista alemã Der Spiegel, em 16 de janeiro. Acossado
pelas jornalistas, que trataram com sarcasmo suas ideias para resolver o
problema da fome no mundo, confrontando-as com as objeções do agronegócio,
reconheceu que o problema da fome muito deve à interferência especulativa do
capital financeiro no comércio de commodities.
Tanto
no documento do MST quanto no artigo de Graziano e Chakrabarti a disputa é
quanto à propriedade dos meios de produção na agricultura: a família agrícola
ou o agronegócio. A fome é aí uma fome puramente teórica. É, pois, na mesma
lógica econômica que das incongruências do artigo de Graziano e Chakrabarti se
dá conta o MST, quando questiona: "Não mencionam em momento algum que as
cifras oficiais mostram que nos três países mencionados (Rússia, Ucrânia e
Casaquistão) a produtividade é muito mais alta nas terras em mãos de camponeses
que naquelas em mãos do agronegócio". Portanto, os verdadeiros personagens
do triunfo agrícola não são os mencionados e cortejados pelos autores do
artigo. Mas se poderia dizer, também, que a fome que os preocupa e preocupa o
MST não é a mesma daquela menininha sudanesa, faminta, fotografada em 1993 por
Kevin Karter (Prêmio Pulitzer), enquanto um abutre ao seu lado esperava o
momento de saciar a própria fome.
José
de Souza Martins - é sociólogo, professor emérito
da Faculdade de Filosofia da USP, autor, entre outros, de Reforma agrária: o
impossível diálogo (EDUSP)
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO
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