O caso brasileiro,
examinado à luz da ação penal 470, o conhecido mensalão, e mesmo anteriormente,
em meio à avassaladora mobilização do Estado para finalidades partidárias,
ensejou comparações com o México do PRI e a Argentina de Perón. Chegou-se a
afirmar, com sagacidade, que, se vingasse entre nós o fatal entrelaçamento
entre máquina de partido e aparelho de Estado, teríamos um cenário
"mexicano". Se predominasse o personalismo e o culto ao "líder
operário que se tornou presidente", teríamos uma
"argentinização". Por décadas afora, variados grupos reivindicariam,
sem cessar, o patrocínio de um "guia genial", mesmo que tivessem
posições diferentes ou até antagônicas.
Tudo isso merece
reflexão e gostaria de lembrar um outro caso de patologia institucional em
sociedade moderna. Trata-se da Itália, um dos países de fronteira na Guerra
Fria, no qual o principal partido de oposição, o antigo Partido Comunista
Italiano (PCI), tinha vetada a participação no governo, embora apresentasse
credenciais indiscutíveis, dada a participação na resistência antifascista e a
condição de refundador do país, num momento em que tal refundação era
essencial. Refiro-me, evidentemente, à Constituição republicana do segundo pós-guerra,
que teve entre seus redatores nomes importantes do comunismo democrático, como
Palmiro Togliatti e Umberto Terracini - este último, um dos "prisioneiros
ilustres" do fascismo, ao lado de Antonio Gramsci.
Mas a participação no
poder estaria sempre vetada ao PCI, apesar da sólida implantação popular e da
invariável fidelidade constitucional. Criou-se, assim, um verdadeiro regime de
ocupação de cargos e funções, especialmente no plano central, por parte do
outro grande partido do pós-guerra, a Democracia Cristã. O PCI só podia
participar de administrações regionais, o que fez muito bem.
A repartição de poder
central obedecia a ritos bizantinos: as correntes da Democracia Cristã eram
"premiadas" de acordo com complicados cálculos, o que não se alterou
com a admissão do tradicional Partido Socialista Italiano à área de governo. A
conclusão é que o Estado não se renovava e as equipes dirigentes envelheciam
sem a possibilidade de oxigenação. O "sistema de poder" assim gerado
chegou a se confundir com grupos criminosos, como a máfia e a camorra, para não
falar em setores desviados dos serviços de segurança, lojas maçônicas, grupos
terroristas de direita.
A gangrena só foi
remediada com a famosa Operação Mãos Limpas, realizada pelo Judiciário e o
Ministério Público contra organizações mafiosas nos anos 1990. O país assistiu
a um grande esforço conjunto das instituições democráticas no sentido de
combater a corrupção e punir os envolvidos em escândalos. Na ocasião, houve uma
série de denúncias e centenas de pessoas foram presas, entre políticos,
empresários e funcionários públicos. Do entrelaçamento com a política, a crise
institucional se instalou. O sistema partidário ruiu, e os cinco partidos que
estavam no poder liderados pela Democracia Cristã se esfacelaram e caminharam
para o desaparecimento. O primeiro-ministro Bettino Craxi, envolvido em
escândalos, caiu em 1992 e teve de se exilar na Tunísia, fugindo da Justiça.
A Democracia Cristã e
o Partido Socialista Italiano transformaram-se em notas de pé de página. E o
velho PCI, que manteve as suas forças, começou uma evolução interessante até o
atual Partido Democrático - impulsionada pela queda do Muro de Berlim, em 1989,
e o fim do socialismo real. No Brasil, tal movimento também foi executado pelo
Partido Comunista Brasileiro (PCB), o primeiro partido comunista da América
Latina a reformular profundamente sua estrutura orgânica, com o surgimento do
Partido Popular Socialista (PPS), em 1992. Tratava-se de uma nova alternativa
democrática e de esquerda, pioneira e ousada, distante da visão totalitária dos
regimes comunistas de então.
A situação italiana,
pelos muitos laços de afinidade que temos, guarda sugestivas aproximações com a
brasileira. E guarda, sobretudo, lições não só para a força hoje hegemônica no
Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT), atolado no pântano do mensalão, como
também para as forças de oposição, que ainda têm dificuldade para estabelecer
uma sólida esquerda democrática com vistas a uma eventual alternativa de poder,
altamente necessária para o futuro das nossas instituições.
Roberto Freire, deputado federal (São Paulo) e presidente do PPS
Fonte: O Globo
Fonte: O Globo
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