sábado, 18 de maio de 2019

Entrevista: ‘As manifestações deram força a partidos de centro’

Entrevista com Rudá Ricci, cientista político

Rudá Ricci, que estudou protestos de 2013, diz que ataque de Bolsonaro a manifestantes afeta eleitor pobre que confia na meritocracia

Bernardo Mello / O Globo

RIO - Para o cientista políticoRudá Ricci , presidente do Instituto Cultiva, as manifestações que tomaram o país na quarta-feira contra os cortes na educação federal tendem a fortalecer institucionalmente os partidos que formam o centrão no Congresso. O presidente da Câmara Rodrigo Maia busca, na avaliação do pesquisador, assumir um papel de “fiel da balança” a cada vez que o Planalto mostra falta de força política.

Ricci, autor do livro “Nas ruas: a nova política que emergiu em junho de 2013”, avalia que o presidente Jair Bolsonaro se equivocou ao rotular os protestos desta semana como movimentos de esquerda. Para o especialista, o perfil dos manifestantes atuais envolve eleitores mais afinados com o discurso do presidente a favor da meritocracia e da família, e que veem a educação como caminho para ascender socialmente.

- Foi isso que o Bolsonaro afetou com os cortes no orçamento. Acho que o cerne da imagem dele sai arranhado -- afirma Ricci.

Leia a seguir a entrevista completa:

• Como os manifestantes desta quarta-feira se diferenciam daqueles que foram às ruas em junho de 2013 e dos que pediram o impeachment de Dilma Rousseff em 2015?

Em 2013, tivemos uma massa de anarquistas e autonomistas que estranhavam o campo partidário. As manifestações, talvez com exceção de São Paulo e um pouco de Brasília, tinham um ethos de esquerda. A pauta principal eram políticas públicas, não corrupção, e havia o uso da tática black bloc. Você tinha uma lógica de esquerda, mas não a esquerda partidária, muito menos petista. Houve uma reação autoritária do governo Dilma contra as lideranças, inclusive colocando a Polícia Federal em cima delas, e a partir daí há um intervalo sem manifestações até chegar a 2015 e 2016.

• E o que surge neste momento?

Aí vemos manifestações de direita e extrema-direita, e com vínculo partidário. A direita brasileira expõe sua pauta. Já as manifestações de quarta-feira têm em seu DNA os estudantes, foram eles que puxaram. A questão é: o que são os estudantes no Brasil atual? São de esquerda, de partido? Não vejo assim.

• Qual é o perfil deste manifestante atual?

Primeiramente, é preciso lembrar que você passa a agregar diferentes valores quando tem uma manifestação de massa. Não dá para dizer que a manifestação desta quarta envolveu só estudantes. Envolveu também famílias desses estudantes, e muitos grupos insatisfeitos com o governo. O discurso dos manifestantes em 2013 foi contra o Estado. Agora estamos falando de uma outra geração, mais conservadora do que aquela de 2013 e mais antenada com o campo institucional e com as verbas públicas. A população que foi às ruas na quarta-feira parecia pensar: “O que estamos pedindo demais?”. Não dá para dizer que é de esquerda, o ideário é muito mais difuso.

• As manifestações anteriores, de alguma maneira, pavimentaram a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro?

Não vou dizer que a vitória do Bolsonaro veio na esteira dessa manifestações. A partir do segundo semestre de 2016, nós vemos a retomada do movimento sindical, culminando na greve geral de abril de 2017. Portanto, as últimas manifestações grandes antes da vitória de Bolsonaro foram das centrais sindicais, que estavam tirando a extrema-direita das ruas.

• Quem, então, se fortaleceu com os movimentos?

Todas essas manifestações levaram a um fortalecimento dos partidos de centro. Esse é um paradoxo que precisa ficar claro. O PMDB é o grande vencedor de 2015, por exemplo. Isso ocorreu porque as manifestações de rua, no Brasil, não conseguiram se canalizar para o plano das instituições. Não sentaram para impor uma pauta com quem manda no país. E aí essa energia cai no colo de quem é semi-oposição ou semi-aliado do governo. Eu tenho impressão que, do ponto de vista institucional, a força que mais cresceu depois desta quarta-feira foi o centrão.

• Por quê?

O (presidente da Câmara) Rodrigo Maia conseguiu na quarta, na penumbra, emplacar um modelo de reforma tributária sem discutir nada com o governo nem com os partidos da base. Ele não tem relação nenhuma com as manifestações. Mas, na medida em que as manifestações debelam o governo Bolsonaro, Maia passa a ser visto como o fiel da balança. Ele tem uma agenda muito clara de reformas, tanto que o centrão já colocou alguns limites na reforma da Previdência.

• Mais alguém tem conseguido aumentar seu capital político nos momentos de fragilidade do governo?

Teoricamente, uma manifestação como a desta quarta poderia jogar água no moinho do PT, por ter ido ao segundo turno contra Bolsonaro. Mas não jogou. O PT perdeu completamente, sua maior liderança está presa. Duas lideranças de maior visibilidade nesse contexto são o Rodrigo Maia, pela direita, e o Guilherme Boulos (PSOL) pela esquerda. Mas eles não têm tanta adesão na grande massa. Chamam atenção, são elogiados, mas não conseguem levar as pessoas a segui-los. Há também um esforço do (governador de São Paulo, João) Doria pela direita, mas ele precisa primeiro pacificar o partido dele.

• Qual é a gravidade dessas manifestações para o governo de Bolsonaro?

Elas atingem duas coisas centrais na sua figura. A primeira delas é a meritocracia, além da religiosidade, como elemento central na vida dos mais pobres. Há pesquisas que revelam que as populações residentes em periferias e nas favelas creditam o sucesso familiar e pessoal mais ao próprio esforço, ou a Deus, do que a políticas de governo. E a educação é o caminho mais palpável para consolidar a renda e melhorar de vida. Fico impressionado com a garotada de institutos federais quando vou dar palestras. Eles falam: “não estou aqui só por mim, mas pela minha família inteira”. Porque muitas vezes esse jovem é o primeiro da família a ingressar nesse tipo de instituição… Foi isso que o Bolsonaro afetou com os cortes no orçamento.

• E qual é o segundo ponto afetado?

A imagem de “macho alfa”, de que veio para arrebentar com esse pessoal que fala muito e faz pouco. E aí, no momento que estoura a manifestação, ele está nos EUA. É o “xerife” que está ausente quando os “forasteiros” tomam conta.

• Bolsonaro incendiou as manifestações ao se referir aos estudantes como “idiotas úteis” e “massa de manobra”?

O que incendiou mesmo, na minha avaliação, foi o duplo recuo em relação ao corte de verbas (na educação federal). Primeiro os deputados do PSL disseram que haveria um recuo do presidente, depois ele mesmo disse que não haveria. Ele armou errado o discurso. O governo Bolsonaro tem derrapado desde o primeiro mês, não tem coordenação política. Eles não jogam o xadrez político, que é complexo. Parece que só conseguem jogar damas.

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