quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Maria Cristina Fernandes || A chancelaria de Jair Bolsonaro

- Valor Econômico

Recuo não mitiga riscos da diplomacia presidencial

No mesmo dia em que acenou com um recuo na indicação do seu filho para a embaixada em Washington, Jair Bolsonaro disse que o Brasil reconheceria, oficialmente, o Hezbollah como uma organização terrorista, "igual ao MST". Se alguém imaginava que um outro embaixador poderia vir a mitigar o atrelamento do Brasil à política externa americana, ali estava o presidente da República para dizer que não.

Ao colocar o Hezbollah na roda, o presidente vai além. Impõe sua tropa contra os punhos de renda. Serviços de inteligência peritos na guerra da desinformação têm, há tempos, disseminado que o Hezbollah atua na fronteira do Brasil com a Venezuela. Mais recentemente, passaram a vincular a organização libanesa ao narcotráfico. Setores das Forças Armadas assinam embaixo, mas o Itamaraty, até o governo Jair Bolsonaro, nunca engolira essa história.

Ao antecipar o selo de terrorista para a organização, o presidente citou ainda sua atuação na Tríplice Fronteira. Não há por que duvidar que o presidente tenha informações privilegiadas sobre o crime naquela região, ainda que careça de uma explicação plausível o fato de o empresário suplente do senador Major Olímpio (PSL-SP) ter tentado fraudar a intermediação da compra de energia de Itaipu falando em nome da família Bolsonaro.

Diplomata por mais de 40 anos, e embaixador do Brasil em Washington no início dos anos 1990, Rubens Ricupero não hesita em atestar a iniciativa do governo brasileiro em pregar o selo de terrorista no Hezbollah como um serviço valioso que o Brasil prestaria aos Estados Unidos e a Israel, sem quaisquer benefícios para o país.

Influente tanto no governo quanto no parlamento libanês, a organização tem um braço armado que saiu fortalecido dos conflitos na Síria e hoje é aliado do Irã, a maior pedra no sapato israelense. Ao carimbá-lo de terrorista, o governo brasileiro corre o risco não apenas de abalar as relações com o Líbano como de provocar nova queda de braço com Irã. Há menos de um mês, a relutância do Brasil em abastecer seus navios quase levou ao cancelamento de exportações brasileiras para aquele país no valor de US$ 2 bilhões anuais.

O Brasil ameaça ser declarado em recessão daqui a 15 dias, buraco que não poderá ser creditado ao governo Michel Temer, que, bem ou mal, fechou o caixa no azul. Ante uma penúria dessas, fazer política externa enrolado na bandeira americana, e de costas para deliberações dos órgãos multilaterais, como no caso das sanções contra o Irã, beira aquilo que no Congresso um dia se deu o nome de crime de responsabilidade.

Inconformado com o atrelamento, inaugurado com a celeuma da embaixada brasileira em Jerusalém, Ricupero indaga o que o Brasil tem a ganhar numa aliança incondicional com um país cujo lema é 'America first'. A obsessão subordinar aliados a seus interesses ficou clara, por exemplo, na visita do secretário de Comércio dos Estados Unidos. Wilbur Ross desembarcou no Brasil semanas depois de o acordo entre Mercosul e União Europeia ter sido assinado. Trouxe três recados.

O primeiro foi o de que o acordo poderia moldar a produção nacional de maneira a prejudicar as exportações brasileiras para os EUA. O segundo foi o de que a tecnologia 5G criaria 'vulnerabilidades' para o Brasil. O terceiro foi materializado num memorando prévio ao acesso brasileiro a um fundo de U$ 60 bilhões para projetos em infraestrutura em países emergentes.

Dado o avanço da China no setor, os Estados Unidos pareciam ter resolvido se mexer. No discurso, porém, Ross foi além. Chamou a atenção dos presentes para as oportunidades que se abrirão aos empreendedores brasileiros na Venezuela com a "reversão do socialismo". Num léxico em que não há palavras ao vento, a diplomacia americana plantava ali a semente de uma versão piorada da "Aliança para o Progresso", cooperação que, na década de 60, buscou desviar a América do Sul da rota cubana.

O encantamento com a visita de Ross se traduziu na desfeita de Bolsonaro com o ministro de Negócios Estrangeiros da França, Jean-Yves Le Drian, preterido na agenda presidencial pela 'live' do barbeiro. E completou-se com impropérios contra o presidente da França, Emmanuel Macron, e a primeira-ministra alemã, Angela Merkel.

Nenhum dos dois, na opinião de Ricupero, passará recibo. Pela simples razão de que o presidente brasileiro não faz por merecê-lo. Além da postergação, por tempo indefinido, da ratificação do acordo pelos parlamentos europeus, a resposta viria na frustração do ingresso do Brasil, avalizado por Trump, na OCDE. O bloco, sediado em Paris, gravita em torno da diplomacia francesa.

Os sinais de que Bolsonaro faz pouco caso do ingresso no clube dos ricos se adensaram com a medida provisória que mudou o Coaf. Ao abrir brechas para o aparelhamento político no órgão, que agora passa a se chamar Unidade de Inteligência Financeira (UIF), o Brasil descumpre recomendações do braço de combate à lavagem de dinheiro da OCDE.

O presidente parece partilhar com o ministro da Economia o encantamento com as perspectivas de um acordo bilateral com os EUA. Ricupero diz que só o desconhecimento do lobby agrícola no Congresso americano é capaz de alimentar esta expectativa. É uma barreira equivalente àquela que se ergue na Europa, por Verdes, cada vez mais fortes na França e na Alemanha, contra o Brasil desmatador.

Como se a política de contenção de danos da ministra da Agricultura não tenha bastado, grandes exportadores como Blairo Maggi e Walter Schalka já soaram o alarme em entrevistas ao Valor. O desmonte só não é maior porque Donald Trump e Xi Jinping custam a se entender. A despeito da prévia de recessão, a saída recorde de investimento estrangeiro de um Brasil tem sido atribuída à tensão provocada pelos embates entre EUA e China. Mas se houver acordo, alerta Ricupero, a primeira beneficiária é a agricultura americana que avançaria no mercado chinês em detrimento dos produtos brasileiros.

Bolsonaro já disse que, se o filho não se tornasse embaixador, poderia ocupar a chancelaria. Ante o legado de um país sem investidor estrangeiro ou mercado externo, seria difícil ao 03 lhe fazer sombra.

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