quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Luiz Carlos Azedo || A nova privatização

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“A ‘malaise’ das estatais não é só consequência da incompetência na gestão, mas do fato de que desvia o foco dos partidos de sua principal missão: promover o bem comum”

O governo anunciou ontem seu programa de privatizações, no qual foram incluídas nove estatais, após reunião da secretária de Parcerias Público-Privadas, Martha Seiller, e do secretário de Desestatização, Salim Mattar, com o presidente Jair Bolsonaro. Telecomunicações Brasileiras S/A (Telebras), Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (Correios), Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev), Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), Empresa Gestora de Ativos (Emgea), Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp) e Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias (ABGF) serão vendidas. Ao apresentar o programa, Mattar revelou a intenção de promover a maior queima de ativos da União possível, privatizando creches, presídios e parques, mas não explicitou qual será a forma de privatização. Caberá ao BNDES elaborar o programa, examinando as condições de mercado e as possibilidades reais na atual conjuntura econômica. Há privatizações e privatizações. Os argumentos a favor da venda de ativos são verdadeiros. O país não tem como financiar investimentos na modernização de nossa infraestrutura sem a venda de ativos e a entrega de serviços à exploração das empresas privadas. Além disso, a maioria das empresas estatais esteve a serviço dos partidos políticos, que miram seus próprios interesses e não os da sociedade. O problema é como isso será feito.

A narrativa ultraliberal do governo, ao apresentar o programa, tende a reproduzir a velha polarização esquerda versus direita, ou seja, o embate entre um projeto nacional desenvolvimentista e o modelo neoliberal. É a mesma narrativa dos anos 1980, quando Margaret Tatcher, a primeira-ministra conservadora, reformou a economia britânica. Essa polêmica parecia ultrapassada depois das privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso, mesmo assim pautou as eleições presidenciais até 2014. É muito provável que seja um assunto vencido, como foi o caso da reforma da Previdência, mas seu marco regulatório, ainda não. Esse é o debate aberto na comissão especial da Câmara que discutirá o modelo de concessões, parcerias público-privadas e privatizações, cujo relator é o deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP).

Governança
O Estado de bem-estar social e o sistema político representativo entraram em crise a partir da terceira revolução industrial, já estamos na quarta. O problema é que isso pôs em risco a democracia. A ligação entre liberalismo econômico e democracia liberal nunca foi automática. Muito menos a globalização é sinônimo de avanço da democracia. A ideia de que a democracia é um credo universal associado ao capitalismo também é falsa. Há uma corrida mundial entre o Ocidente e o Oriente para reinventar o Estado, cujo objetivo é modernizar a economia e não necessariamente aperfeiçoar a democracia. Não se pode dizer, por exemplo, que os Estados Unidos (uma democracia liberal) estão se saindo melhor nessa corrida do que a China (uma ditadura comunista).

A “malaise” das estatais não é só consequência da incompetência dos políticos na sua gestão, mas do fato de que a administração de empresas e de serviços desvia o foco dos partidos de sua principal missão: promover o bem comum. O resto é consequência. A gestão da nossa riqueza pública estará no centro desse debate sobre as privatizações. A esquerda demoniza o uso de mecanismos de mercado para melhorar a situação do Estado. A direita demoniza o uso do Estado para lidar com as falhas do mercado. Enquanto isso, as empresas de tecnologia estão reinventando o mundo.

A solução adotada pela Suécia é um “case” das privatizações: retirar a governança dos ativos públicos das mãos dos políticos e passá-los à gestão de profissionais gabaritados. A criação de holdings para administrar os ativos públicos é uma experiência bem-sucedida em países como Finlândia, Áustria, Reino Unido e Alemanha. A Suécia adotou um modelo fragmentado, no qual os donos originais mantiveram seus ativos em várias holdings; a Finlândia optou por centralizar os ativos numa só holding. Em ambos os casos, a gestão foi confiada a profissionais de mercado, sem interferência política, com um modelo de gestão semelhante aos modelos dos bancos centrais e dos fundos de pensão.

O caso do Deutsche Bundespost da Alemanha é dos mais emblemáticos. Em 1995, a empresa foi transformada em três sociedades anônimas. Hoje, o Deutsche Post atua em 220 países, emprega 480 mil pessoas e movimenta 55 bilhões de euros. A nossa riqueza pública é muito maior do que a dívida pública; administrá-la melhor poderia ajudar a resolver o problema do endividamento, ao mesmo tempo em que financiaria o crescimento econômico. O mais importante não é necessariamente a propriedade, é o rendimento dos ativos públicos. Melhorar a gestão desses recursos é fundamental para o equilíbrio fiscal. Mais ainda para combater a corrupção e fortalecer a democracia.

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