- O Globo
Em cruzada contra os livros, o governo de Rondônia proibiu obras que já haviam sido censuradas pela ditadura militar. No novo ‘Index’, sobrou até para o humor
Em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro reclamou que os livros atuais são “um montão de amontoado de muita coisa escrita”. Na quinta-feira, o governo de Rondônia resolveu tomar uma atitude. Mandou recolher 43 obras literárias das escolas públicas.
No ofício que ordenou a medida, a Secretaria da Educação alegou a presença de “conteúdos inadequados” para crianças e adolescentes. O Estado é governado pelo Coronel Marcos Rocha, um bolsonarista de carteirinha que se elegeu pelo PSL e deve migrar para o Aliança pelo Brasil.
O Index Prohibitorum incluiu clássicos como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, e “Macunaíma”, de Mário de Andrade. Também entraram na mira dois livros que já haviam sido censurados pela ditadura militar: “O Ato e o Fato”, de Carlos Heitor Cony, e “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca.
Em 1964, Cony foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional por causa da coletânea de artigos sobre o golpe. O jornalista ainda seria preso seis vezes por criticar o regime dos generais. Em 1976, o ministro Armando Falcão determinou a apreensão do livro de Fonseca. Afirmou que os contos eram contrários “à moral e aos bons costumes”.
Na nova onda obscurantista, sobrou até para o humor. Entre os 43 proibidões de Rondônia, está o “Guia Millôr da História do Brasil”, publicado em 2014. É um livro perigoso para quem não gosta que os estudantes pensem com a própria cabeça. Na antologia póstuma, Millôr Fernandes ri dos heróis de pedestal e mostra que nenhum governo merece ser levado muito a sério.
“O Brasil é o Museu do Índio”, cravou o guru do Méier, em 1976. “Se Deus fosse mesmo brasileiro, a nossa moeda seria o dólar”, escreveu, em 1990.
O livro apresenta a ditadura como ela era, e não como prega a extrema direita no poder. “Quem é de oposição é porque não é de muito falar”, ironizou Millôr em 1973, numa referência à repressão política. “Existe alguém que mereça mais o AI-5 que os que o inventaram?”, questionou, cinco anos depois.
Em 1979, o humorista resumiu a sequência de generais que vestiram a faixa sem passar pelas urnas: “Todos bem diferentes, mas com uma identidade em comum — o absoluto desprezo pelo civilis vulgaris”.
Millôr também debochou dos governos democráticos. Quando Sarney assumiu no lugar de Tancredo Neves, em 1985, ele sintetizou o sentimento geral em apenas duas palavras: “Fomos bigodeados”.
Embora o autor tenha morrido em 2012, o guia reúne tiradas atualíssimas. Aí vão três delas, em ordem cronológica: “Muita gente aí que fala o tempo todo contra a corrupção está apenas cuspindo no prato em que não comeu” (1976); “No Planalto, muita gente de quatro fingindo que está apenas procurando a lente de contato” (1980); “O Brasil espera que cada bestalhão cumpra o seu dever” (1992).
É difícil saber qual das frases irritou mais os censores da “nova era”. Se tivessem pesquisado a obra de Millôr, eles poderiam ter esbarrado numa advertência famosa: “Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar”.
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