domingo, 9 de fevereiro de 2020

Dorrit Harazim - Fevereiro bissexto

- O Globo

Trump pôde transformar em triunfo personalista sua absolvição no terceiro processo de impeachment da história americana

Não é toda semana que os sistemas de governo dos Estados Unidos e da China são colocados à prova de forma tão imprevista, escancarada e simultânea. Ainda é cedo para dimensionar o estrago político e institucional provocado, do lado americano, pelo fiasco na apuração das prévias democratas no estado de Iowa, e do lado chinês pela fratura no controle do noticiário em tempos de coronavírus. Certo é que nem Estados Unidos nem China sairão do mesmo tamanho após este tumultuado início de fevereiro bissexto.

A erosão de confiança no processo eleitoral dos Estados Unidos vem desde longe ( só no século 19 houve três recontagens em pleitos presidenciais). O solavanco mais ruidoso da era moderna ocorreu no ano 2000, quando a contestada vitória de George W. Bush sobre o democrata Al Gore por 5 votos no colégio eleitoral exigiu 39 dias e a interferência da Suprema Corte para ser sacramentada. De lá para cá as acusações de partidarismo no remapeamento de distritos eleitorais e nas regras de habilitação ao voto se multiplicaram. E como tudo na Era Trump nasce espetaculoso, também a percepção da lisura do processo eleitoral entrou em espiral a partir de 2016, com trajetória incerta desde então.

A porção democrata do país é a que adentra 2020 mais exaurida e duplamente derrotada. Primeiro, Trump pôde transformar em triunfo personalista sua absolvição no terceiro processo de impeachment da história americana. O fígado do presidente não esquecerá o solitário voto dissonante do senador republicano Mitt Romney, mas de resto Trump se sentirá alforriado para atropelar estorvos à sua reeleição. Inclusive para contestar de antemão todo resultado que não lhe seja favorável.

É neste sentido que os erros, inconsistências e falhas na apuração da prévia democrata desta semana em Iowa foram particularmente lamentáveis — eles injetaram insidiosa suspeita entre os principais candidatos e suas militâncias. Até mesmo a agência noticiosa Associated Press informou não ter segurança para divulgar o resultado final. Só faltou o desembarque de uma comissão da Organização dos Estados Americanos (OEA) para arbitrar...

Desencanto, desmobilização, desconfiança ou desunião nesta fase crucial é tudo de que o Partido Democrata menos precisa, caso pretenda realmente interromper a consolidação da America de Donald Trump para além de um primeiro mandato. Sendo a ideia de democracia uma obra em progresso que se modela e remodela sem nunca se completar, qualquer recuo sai caro.

Em ditaduras, recuar tende a sair mais caro ainda. No atual combate do regime de Xi Jinping com o coronavírus, simultâneo ao confronto da narrativa oficial e o que consegue trafegar em redes sociais, o controle governamental sobre a circulação de fatos e boatos é vital. Esta semana Xi Jinping recuou uma casa ao desmentir a não morte (ou seja, ao confirmar a morte) da vítima que se tornara herói nacional do combate ao coronavírus. Chamava-se Li Wenliang, tinha 34 anos e trabalhava como oftalmologista num hospital de Wuhan, epicentro da epidemia. Primeiro a alertar o público para a ameaça então ainda desconhecida, sofreu represália oficial por disseminar “rumores”, mas não silenciou. Manteve um frágil canal de informação pública inclusive com a CNN até pouco antes de morrer na quinta-feira. Com a blogosfera inundada de mensagens de gratidão a Li, o novo inesperado herói popular também recebeu arriscadas homenagens físicas na própria China —uma mureta coberta de neve em Pequim, por exemplo, teve o seu nome desenhado em letras garrafais. A tentativa inicial do regime de desmentir a morte de um entre seus 1,3 bilhão de cidadãos deu errado. Tão errado quanto o fiasco das prévias em Iowa.

Por momentos, neste fevereiro bissexto o mundo todo se parece um pouco com os malogrados passageiros do cruzeiro Westerdam, da empresa Holland America Line (HAL), que zanzam desde a semana passada pelo Mar da China sem saber onde irão aportar. O navio zarpara de Cingapura em 16 de janeiro para um giro de 30 dias pela Ásia, foi deixando 1.254 viajantes pelo caminho e embarcou outros 768 em Hong-Kong. Desde então está sem norte.

Apesar de não ter nenhum caso positivo de coronavírus a bordo, 33 membros da tripulação do Westerdam apresentam sintomas e, por isso, Filipinas, Taiwan e o Japão já informaram o fechamento de seus portos para a embarcação. Os passageiros vivem as 24 horas do dia com pavor de receber a informação de um primeiro caso confirmado.

Sem falar nos três outros cruzeiros sob quarentena — um ancorado ao sul da ilha de Manhattan, outro em Cingapura, o terceiro no Japão —lotados de passageiros que se descobrem estar numa prisão contaminada.

Vale lembrar que as cabines internas desses transatlânticos sequer têm escotilhas. É um mundo às cegas.

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