domingo, 18 de abril de 2021

Dorrit Harazim - Emparedado

- O Globo

No fundo, como somos meros locatários da casa da História, convém pelo menos tentarmos perceber o presente. Fácil não é. Individualmente, o que cada um ouve e vê depende em grande parte do seu assentamento na vida, do tipo de ser humano que decidiu ser. No “Livro do desassossego”, Fernando Pessoa já apontava para a tirania superior que nos obriga a continuar caminhando mesmo sem saber o que nossa incerteza vai encontrar. Talvez por isso tantos se mantêm fincados no mesmo lugar, entrincheirados nas mesmas ideias, à espera do sinal verde da certeza.

Por ter em mãos um Brasil sem rumo nem norte, o presidente Jair Bolsonaro teima em esperar por certezas fugidias. Godot não virá, podes crer. Ultimamente, ele tenta se mostrar aprumado, só que o chão de Brasília se mostra cada vez mais movediço. O capitão dá a impressão de falar para o próprio espelho quando anuncia que “o Brasil está no limite. O pessoal fala que eu tenho que tomar providências. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”. Na quarta-feira, falando a apoiadores de plantão no Alvorada, ele estava particularmente irritadiço, impaciente com “a fome, a miséria, o desemprego [que] estão aí. Só não vê quem não quer ou quem não está na rua... E tem gente de paletó e gravata que não quer enxergar”.

Bolsonaro estava de terno e gravata. A rua com que comunga sem máscara não espelha o Brasil real dos que precisam trabalhar na Covid-19. E o povo que ele diz querer ouvir está perdendo a força de gritar — precisa economizar o fôlego para continuar vivo.

Levantamento encomendado à Lagom Data com exclusividade pelo jornal “El País Brasil” mostra o alto custo pago pelos trabalhadores formais dos setores considerados essenciais, que, portanto, não puderam parar em tempos de pandemia. Dados pinçados no Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) para o primeiro bimestre de 2021, quando comparados a janeiro e fevereiro de 2020, revelam uma disparada de óbitos entre frentistas de posto de gasolina (68%), caixas de supermercado (67%), motoristas de ônibus (62%), vigilantes (59%). Sem falar no salto de contratos de trabalho encerrados por morte entre os profissionais da saúde, do ensino e da construção civil.

Levantamento semelhante, com foco na Região Metropolitana de Curitiba e publicado no jornal “Plural”, revelou um aumento de 225% nas mortes de faxineiras, vigilantes, porteiros, motoristas e cobradores do transporte público, além de sete outras profissões que não puderam parar na capital paranaense.

Os dois estudos abrangem somente o trabalho formal no país. Apesar de sujeito à redução salarial, cruel espaçamento do auxílio emergencial e condenado à exposição no transporte público superlotado, é uma mão de obra invejada pela massa dos sem- registro. Somente quando começarem a emergir estudos sobre a razia no Brasil informal, teremos o quadro completo do abandono nacional.

Só na Bahia, revela o “Correio”, de Salvador, ao abrir uma fresta no emparedamento físico e financeiro a que tantas empregadas domésticas são submetidas durante a pandemia, 28 pedidos de socorro estão anotados num registro do sindicato da categoria. Foram proibidas pelos patrões de voltar para suas casas enquanto a peste durar. Difícil saber quantas outras, Brasil afora, sequer ousam pedir ajuda externa. Uma delas, entrevistada pela repórter Fernanda Santana, contou ter ficado sem ver a família por quase um ano, sem folga nem pagamento extra, cuidando de duas crianças, da limpeza e da cozinha. Seus patrões lhe impuseram um lockdown privado. por medo de ser contaminados caso ela fosse infectada no bairro onde mora, ou no ir e vir coletivo. Recebia R$ 1.500 por mês. Não aguentou e pediu demissão em fevereiro, sem receber direitos trabalhistas.

Não ocorreu aos patrões fornecer-lhe máscaras de qualidade, álcool gel, transporte individual por aplicativo, fazer algum acordo de benefício mútuo. Sairia caro demais. Tampouco lhes ocorreu ficar sem empregada. Mais fácil mantê-la sem sair — afinal, “ela era da família”, “estavam apenas ajudando”. Segundo o IBGE, depois do comércio, o emprego doméstico é o segundo mais afetado pela perda de empregos na pandemia e, de longa data, o mais propício a abusos de memória escravagista por parte das classes média e alta.

Toda geração procura dar uma arrumada geral na mobília do passado para melhor acomodar suas ansiedades presentes. É da gloriosa atriz Mary Astor, de “O falcão maltês”, a opinião de que uma pessoa sem memória ou é uma criança ou é amnésico, e de que todo país sem memória ou não cresceu ou é amnésico — mas tampouco é um país.

Jair Bolsonaro não tem memória, não está capacitado a entender a História, muito menos de encarar o presente. Convém não deixar o futuro do país sem futuro em suas mãos.

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