No
fundo, como somos meros locatários da casa da História, convém pelo menos
tentarmos perceber o presente. Fácil não é. Individualmente, o que cada um ouve
e vê depende em grande parte do seu assentamento na vida, do tipo de ser humano
que decidiu ser. No “Livro do desassossego”, Fernando Pessoa já apontava para a
tirania superior que nos obriga a continuar caminhando mesmo sem saber o que
nossa incerteza vai encontrar. Talvez por isso tantos se mantêm fincados no
mesmo lugar, entrincheirados nas mesmas ideias, à espera do sinal verde da
certeza.
Por
ter em mãos um Brasil sem rumo nem norte, o presidente Jair Bolsonaro teima em
esperar por certezas fugidias. Godot não virá, podes crer. Ultimamente, ele
tenta se mostrar aprumado, só que o chão de Brasília se mostra cada vez mais
movediço. O capitão dá a impressão de falar para o próprio espelho quando
anuncia que “o Brasil está no limite. O pessoal fala que eu tenho que tomar
providências. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”. Na quarta-feira,
falando a apoiadores de plantão no Alvorada, ele estava particularmente
irritadiço, impaciente com “a fome, a miséria, o desemprego [que] estão aí. Só
não vê quem não quer ou quem não está na rua... E tem gente de paletó e gravata
que não quer enxergar”.
Bolsonaro estava de terno e gravata. A rua com que comunga sem máscara não espelha o Brasil real dos que precisam trabalhar na Covid-19. E o povo que ele diz querer ouvir está perdendo a força de gritar — precisa economizar o fôlego para continuar vivo.
Levantamento
encomendado à Lagom Data com exclusividade pelo jornal “El País Brasil” mostra
o alto custo pago pelos trabalhadores formais dos setores considerados
essenciais, que, portanto, não puderam parar em tempos de pandemia. Dados
pinçados no Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) para o
primeiro bimestre de 2021, quando comparados a janeiro e fevereiro de 2020,
revelam uma disparada de óbitos entre frentistas de posto de gasolina (68%),
caixas de supermercado (67%), motoristas de ônibus (62%), vigilantes (59%). Sem
falar no salto de contratos de trabalho encerrados por morte entre os
profissionais da saúde, do ensino e da construção civil.
Levantamento
semelhante, com foco na Região Metropolitana de Curitiba e publicado no jornal
“Plural”, revelou um aumento de 225% nas mortes de faxineiras, vigilantes,
porteiros, motoristas e cobradores do transporte público, além de sete outras
profissões que não puderam parar na capital paranaense.
Os
dois estudos abrangem somente o trabalho formal no país. Apesar de sujeito à
redução salarial, cruel espaçamento do auxílio emergencial e condenado à
exposição no transporte público superlotado, é uma mão de obra invejada pela
massa dos sem- registro. Somente quando começarem a emergir estudos sobre a
razia no Brasil informal, teremos o quadro completo do abandono nacional.
Só
na Bahia, revela o “Correio”, de Salvador, ao abrir uma fresta no emparedamento
físico e financeiro a que tantas empregadas domésticas são submetidas durante a
pandemia, 28 pedidos de socorro estão anotados num registro do sindicato da
categoria. Foram proibidas pelos patrões de voltar para suas casas enquanto a
peste durar. Difícil saber quantas outras, Brasil afora, sequer ousam pedir
ajuda externa. Uma delas, entrevistada pela repórter Fernanda Santana, contou
ter ficado sem ver a família por quase um ano, sem folga nem pagamento extra,
cuidando de duas crianças, da limpeza e da cozinha. Seus patrões lhe impuseram
um lockdown privado. por medo de ser contaminados caso ela fosse infectada no
bairro onde mora, ou no ir e vir coletivo. Recebia R$ 1.500 por mês. Não
aguentou e pediu demissão em fevereiro, sem receber direitos trabalhistas.
Não
ocorreu aos patrões fornecer-lhe máscaras de qualidade, álcool gel, transporte
individual por aplicativo, fazer algum acordo de benefício mútuo. Sairia caro
demais. Tampouco lhes ocorreu ficar sem empregada. Mais fácil mantê-la sem sair
— afinal, “ela era da família”, “estavam apenas ajudando”. Segundo o IBGE,
depois do comércio, o emprego doméstico é o segundo mais afetado pela perda de
empregos na pandemia e, de longa data, o mais propício a abusos de memória
escravagista por parte das classes média e alta.
Toda
geração procura dar uma arrumada geral na mobília do passado para melhor
acomodar suas ansiedades presentes. É da gloriosa atriz Mary Astor, de “O
falcão maltês”, a opinião de que uma pessoa sem memória ou é uma criança ou é
amnésico, e de que todo país sem memória ou não cresceu ou é amnésico — mas
tampouco é um país.
Jair Bolsonaro não tem memória, não está capacitado a entender a História, muito menos de encarar o presente. Convém não deixar o futuro do país sem futuro em suas mãos.
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