terça-feira, 10 de junho de 2025

As trombadas dos capitais - Luiz Gonzaga Belluzzo

CartaCapital

Em meio a enxurrada de recursos de arbitragem com juros e especulação com moedas, emergentes levam surras periódicas

As danças e contradanças dos movimentos internacionais de capitais são desconsideradas por gregos e troianos no debate econômico nativo.

(Escrevi nativo para homenagear meu grande amigo Mino Carta.)

As continuadas flutuações do real perante o dólar deflagraram uma avalanche de opiniões que desrespeitam e ­ignoram o fenômeno monetário-financeiro internacional. As opiniões derramam-se em queixas que atribuem à irresponsabilidade fiscal os sucessivos e intensos declínios de valor do nosso Real diante do patrono do sistema monetário internacional, o Mister Dólar.

Imagino que uma passagem pela história possa nos ajudar a compreender o fenômeno. Vamos começar com a ­estagflação dos anos 70 do século passado. Naqueles tempos, a desvinculação do dólar de sua “base áurea” em 1971 juntou-se ao Choque do Petróleo de 1973 para incitar a continuada desvalorização do dólar. O declínio da moeda norte-americana foi enfrentado com a elevação da policy ­rate deflagrada por Paul Volcker em 1979. A subida dos juros alcançou a marca de 21% em 1980. Essa proeza foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda-reserva.

À sombra do fortalecimento do dólar, Tio Sam estimulou as políticas de abertura comercial e impôs a liberalização financeira urbi et orbi. Assim, suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de gestores da finança e da moeda universais. Nesse período, os deslocamentos tectônicos na geoeconomia mundial – particularmente, a ascensão da China como potência manufatureira – produziram as trumpadas de Donald Trump que pretendem resgatar a hegemonia norte-americana em declínio.

O estudo do Banco de Compensações Internacionais (BIS) – The ­Transmission of Unconventional Monetary Policy to Emerging Markets – admite que há consenso a respeito da predominância dos fatores “externos” sobre os fatores internos na determinação dos fluxos de capitais.

Reza o relatório: 

“Os bancos centrais das Economias Emergentes têm enfrentado desafios políticos decorrentes tanto da apreciação da taxa de câmbio quanto da depreciação nas últimas duas décadas. Durante a década anterior à crise de 2008/2009, os diferenciais de taxas de juro resultaram em entradas substanciais de capital e pressões de apreciação da taxa de câmbio”.

O economista Claudio Borio, do BIS, já desvelou a verdade que a maioria dos analistas se esforça para esconder sob a rica tapeçaria de seus inefáveis “saberes fiscalistas”. A morfologia dos movimentos de capitais é intrinsecamente pró-cíclica em sua recorrência maníaca. Oscila entre abundância de grana estrangeira e as paradas súbitas.

Esse “eterno retorno do mesmo” (Nietzsche, tenha piedade) está determinado pela interação entre a liberalização das contas de capital, o avanço das economias “emergentes” como polos de atração da movimentação financeira e o papel dos EUA como provedores de ativos líquidos de “última instância”, os títulos do Tesouro norte-americano.

A interpenetração financeira suscitou a diversificação dos ativos à escala global, o inchaço dos mercados futuros de câmbio e juros e, assim, impôs a “internacionalização” das carteiras dos administradores da riqueza, o que coloca formidáveis desafios às políticas monetárias nacionais. Diante da enxurrada de capitais empenhados na arbitragem com taxas de juro e na especulação desaçaimada com suas moedas, os emergentes levam surras periódicas dos agentes da finança dotados de (sic) expectativas racionais.

O controle da liquidez em moeda forte é, portanto, crucial para a sempre precária combinação entre estabilidade e crescimento nas economias de moedas não conversíveis.

Os países periféricos mais bem-sucedidos, como a China, preferiram manter controles seletivos e pragmáticos de câmbio e de capitais. Acumulam reservas elevadas em moeda forte bem como elevaram substancialmente a participação do ouro na formação de seus ativos de reserva. Essa forma de gestão tem o propósito de evitar “choques de desvalorização”, que possam afetar negativamente a taxa de juros doméstica.

A sucessão de episódios valoriza­­­­­­­­­ção/des­valorização demonstra que a almejada correção dos chamados desequilíbrios globais vai exigir regras não compatíveis com o sistema monetário internacional em sua forma atual. O movimento dos BRICS revela a reação de um conjunto de países diante dos percalços de uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar. •

Publicado na edição n° 1365 de CartaCapital, em 11 de junho de 2025.

 

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