Desde uma perspectiva histórico-materialista,
a democracia liberal burguesa é compreendida como uma forma específica e
historicamente determinada de dominação de classe. Lênin, em sua análise sobre
o Estado e a Revolução, foi incisivo ao apontar que a democracia sob a égide do
capitalismo opera de maneira fundamentalmente distinta para as diferentes
classes sociais, funcionando como uma liberdade mais plena para a burguesia e,
simultaneamente, como um sistema de restrições veladas para o restante da sociedade.
As conquistas formais, como o voto universal, a liberdade de imprensa e as
garantias jurídicas, embora importantes, não alteram a estrutura basilar de
poder assentada na propriedade privada dos meios de produção e na exploração do
trabalho, a riqueza continua concentrada nas mãos de poucos, os avanços
emancipatórios são raros e demorados.
Georg Lukács, em História e Consciência de
Classe, aprofunda essa crítica ao analisar como a sociedade capitalista
estrutura todas as relações sociais em torno da forma-mercadoria, gerando um
processo de alienação e reificação que afeta não apenas o trabalhador em sua
atividade produtiva, mas também o cidadão em sua participação política. A
democracia liberal, nesse contexto, torna-se permeada por esse nivelamento
forçado, as relações humanas e políticas são coisificadas, e o indivíduo
sente-se impotente diante do tamanho aparentemente inexpugnável das estruturas
sociais, como o mercado e o próprio Estado, que parecem operar com uma lógica
autônoma e incontrolável, expressões concretas dessa dinâmica incluem o
financiamento bilionário de campanhas, o poder desmedido do lobby corporativo e
a influência do grande capital no controle dos conglomerados de mídia, sempre
com vistas à manutenção da narrativa dos acontecimentos e alienação dos
fundamentos reais da crise perante a opinião pública.
Esta análise ajuda a compreender por que o
aprofundamento da desigualdade econômica, exacerbado pelas políticas
neoliberais implementadas a partir dos anos 1980, corrói inevitavelmente a
substância da igualdade política formal, tanto decantada no que os comunistas
chamavam de democracias burguesas. A neutralidade do Estado liberal é
crescentemente percebida como uma fachada que mascara sua cumplicidade com os
processos de acumulação profunda de riquezas pela elite, enquanto os
instrumentos democráticos formais que subsistem internamente nelas,
demonstram-se frequentemente incapazes de reverter ou mesmo refrear essa
concentração extrema e contínua de dinheiro e poder.
A fragilização das instituições democráticas
liberais e a crise de representatividade abriram espaço para a emergência e
consolidação de lideranças autoritárias e movimentos populistas de direita em
escala global. Fenômenos como o retorno de Donald Trump nos EUA, o
fortalecimento de figuras como Viktor Orbán na Hungria, Jair Bolsonaro no
Brasil, entre outros, ilustram essa tendência preocupante, embora as causas
sejam multifatoriais, envolvendo desde elementos culturais, identitários e
comunicacionais, até a falta de uma pauta mínima unificadora da esquerda
mundial, uma análise estrutural não pode ignorar o terreno fértil criado pela
crise socioeconômica, nascida no âmago do próprio sistema capitalista.
Diante da possibilidade do crescimento e
triunfo global de movimentos socialistas, a superestrutura capitalista lança
sem pudor sua derradeira cartada, que é o apelo ao nacionalismo exacerbado, ao
discurso anti-establishment (ainda que defendam interesses das elites
políticas, religiosas e econômicas), ao culto da força e à deslegitimação
sistemática dos mecanismos de controle democrático, como o judiciário
independente, a imprensa livre e as organizações da sociedade civil. Antonio
Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, oferece ferramentas conceituais precisas
para interpretar esse cenário, o conceito de "crise orgânica"
descreve momentos em que as classes dominantes perdem o consenso e não
conseguem mais manter sua hegemonia através da direção político-cultural,
recorrendo crescentemente à coerção e ao "domínio puro".
Gramsci também identifica o
"cesarismo" como uma solução política que pode emergir em tais crises
de autoridade e hegemonia, onde uma figura carismática, amparada pelo ou
através do aparato repressivo estatal, intervém para arbitrar os conflitos
sociais agudos, geralmente restaurando a ordem em favor dos mesmos grupos
dominantes, ainda que sob uma nova roupagem política, mudando para nada mudar.
Esses líderes frequentemente canalizam ressentimentos e frustrações legítimas
de setores da população precarizados ou marginalizados pelas transformações
econômicas, direcionando-os, contudo, contra bodes expiatórios, normalmente a
“minoria da vez”, imigrantes, elites culturais, estado laico, assim por diante,
e não contra as raízes estruturais causadoras da desigualdade.
A arquitetura de governança global construída
após a Segunda Guerra Mundial, com instituições como a ONU, o FMI, o Banco
Mundial e, posteriormente, a OMC, foi um pilar da ordem liberal internacional
liderada pelo Ocidente, com o objetivo declarado de promover a paz, a
cooperação e a estabilidade econômica. No entanto, particularmente após a crise
financeira de 2008 e com as mudanças no equilíbrio de poder global, essas
instituições enfrentam um total descrédito, Noam Chomsky, em obras como “Quem
Manda no Mundo?”, argumenta consistentemente que essas instituições foram,
desde sua origem, moldadas para servir aos interesses geopolíticos e econômicos
das potências hegemônicas, notadamente os EUA.
A aplicação seletiva das normas
internacionais, o abandono de acordos quando estes têm seus interesses
contrariados, o uso unilateral de sanções econômicas e intervenções militares à
margem do direito internacional, são evidências dessa dinâmica, confirmando
que, a grosso modo, essas instituições que poderiam ser importantes para um
processo multilateral decisório, são ao final apenas instrumento ideológico de
manipulação internacional de interesses das elites nacionais. A desconfiança em
relação ao multilateralismo no atual mundo das democracias liberais reflete não
apenas a percepção de sua instrumentalização pelas grandes potências, mas
também, para muitas nações do chamado Sul Global, a sensação de que essas
estruturas perpetuam relações neocoloniais e assimétricas. A crise do
multilateralismo, portanto, não é apenas um sintoma da decadência da hegemonia
ocidental, mas também um fator que aprofunda a instabilidade e a fragmentação
da ordem internacional, dificultando respostas coordenadas a desafios globais
urgentes como pandemias e mudanças climáticas.
Diante desse cenário complexo, emergem
movimentos sociais, propostas políticas e reflexões teóricas que buscam
caminhos para superar os limites da democracia liberal burguesa, iniciativas
como o DiEM25 (Movimento Democracia na Europa 2025), co-fundado por Yanis
Varoufakis, tentam articular uma resposta transnacional à crise, propondo a
democratização radical das instituições europeias, a implementação de políticas
de redistribuição de renda e uma transição ecológica e socialmente justa. Ainda
está distante da necessidade da transformação disruptiva necessária para o
mundo, mas sem dúvida é um avanço. No campo teórico-político, diversas
correntes da esquerda contemporânea retomam e atualizam a ideia de uma
"radicalidade democrática” ou "democracia popular", que
transcenda a esfera meramente representativa e se estenda ao controle social e
democrático da economia e das principais decisões que afetam a vida coletiva.
Essa perspectiva dialoga com as propostas históricas de autogoverno dos trabalhadores,
como os conselhos operários defendidos por Rosa Luxemburgo como expressão de
uma “democracia proletária direta e participativa”.
Mesmo pensadores situados fora da tradição
marxista mais ortodoxa, como Norberto Bobbio, contribuíram para o diagnóstico
da crise. Em O Futuro da Democracia, ele alertava para as promessas não
cumpridas da democracia, apontando o fosso crescente entre os ideais
democráticos de participação e igualdade e a realidade da apatia política, do
poder de grupos ocultos e da persistência e crescimento das desigualdades. Para
Bobbio, a vitalidade da democracia dependeria não apenas da manutenção das
regras formais do jogo, mas da expansão dos direitos sociais e da capacidade de
democratizar esferas para além do Estado, como as empresas e a administração
pública, portanto, é como construir formas de organização política e social que
avancem para uma participação popular substantiva e efetiva e com resultados
reais na vida das pessoas.
A história do capitalismo demonstra que os
períodos de crise estrutural profunda foram frequentemente seguidos por ondas
de reação autoritária, nacionalismos, extremismo e conflitos
interimperialistas. A análise de Lenin sobre o imperialismo, fase superior do
capitalismo, já apontava a tendência inerente ao capital monopolista de buscar
a expansão, a dominação de mercados e o controle de territórios, gerando
rivalidades que culminaram nas grandes guerras do século XX.
Essa linha de análise histórica encontra ecos
em críticas mais radicais à socialdemocracia e às vias puramente reformistas.
Autores como Harpal Brar, por exemplo, argumentam que, em momentos críticos de
confronto de classes, setores da socialdemocracia, ao priorizarem a
estabilidade do sistema capitalista e abdicarem de uma transformação
revolucionária do status quo, podem acabar, na prática, por facilitar ou
legitimar medidas autoritárias que visam conter a mobilização popular e
preservar a ordem burguesa.
Essas formas de leitura são logicamente
controversas, mas levantam questões importantes sobre os limites do reformismo
dentro do modo de produção capitalista, principalmente em contextos de crise
aguda. Essas análises históricas sugerem que a defesa acrítica da democracia
liberal existente, sem um questionamento de suas bases econômicas e de classe,
pode paradoxalmente pavimentar o caminho para sua própria negação, seja através
do fortalecimento de aparatos repressivos estatais, seja pela ascensão de regimes
abertamente ditatoriais em nome de preservar o mal já conhecido. E sob o signo
do medo ao novo, acaba exortando o fantasma do porvir, abraçando sem pudores ou
escrúpulos as soluções que garantem no final a sobrevivência do capital, mesmo
que esta seja uma solução final pelo fascismo.
A crise atual da democracia liberal burguesa
não aponta para um destino histórico inevitável, mas abre um campo de disputas
e possibilidades, como Gramsci nos ensinou, a história é feita de lutas pela
hegemonia, e não de fatalismos econômicos. A questão crucial não é apenas se a
forma atual da democracia liberal persistirá, mas quais novas configurações de
poder, dominação ou, alternativamente, de emancipação surgirão das suas ruínas
ou da sua transformação. De um lado, o risco da consolidação de novos autoritarismos
é real, potencializado por tecnologias digitais e algoritmos comandados por uma
nova elite que potencializa (impulsiona artificialmente) o pensamento
extremista de direita e logicamente inviabiliza as tentativas de mobilização do
campo oposto, e esse controle e manipulação da informação em massa não está
presente em um país apenas, mas em escala global, como nunca experimentamos na
história da humanidade.
Estes mecanismos de controle podem assumir
formas diversas, desde regimes abertamente ditatoriais até democracias
iliberais dóceis, que mantêm uma fachada de normalidade democrática enquanto
corroem direitos e liberdades fundamentais do seu povo como se fossem decisões
soberanas de seus executivos, parlamentos e judiciário. De outro lado, contudo,
persistem e se renovam as lutas por alternativas emancipatórias, ancoradas em
práticas de democracia direta e participativa, na busca por uma nova sociedade,
se for disruptiva, que seja, mas buscando uma justiça social, econômica
radical, humanista e internacionalista.
A análise informada por pensadores como
Lukács, Gramsci, Chomsky e Bobbio, entre outros, converge ao indicar que uma
superação progressista da crise dificilmente ocorrerá dentro dos marcos
conceituais e das estruturas de poder do capitalismo liberal, neoliberal, ou
quaisquer de seus novos engendros para se reinventar. Exigirá, provavelmente,
um rompimento com a lógica da mercantilização de todas as esferas da vida, a
democratização profunda das estruturas econômicas e políticas, e a reconstrução
da cooperação internacional sobre bases mais justas e igualitárias, rompendo
sem olhar para trás, se não com tudo, mas com muito do que aí está, essa roupa
nunca nos serviu e não há de ser agora que servirá. O dilema histórico
formulado por Rosa Luxemburgo ecoa com força nos dias atuais: "Socialismo
ou Barbárie!".
*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.
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