O Globo
Não é razoável prender alguém por contar piadas. Não é razoável prender alguém por cantar músicas ou recitar poemas ou escrever livros. Se chegamos ao ponto de não achar sequer razoável algo assim, é porque perdemos a noção do que uma democracia quer dizer. Não é só isso: deixamos de fingir ser garantistas e abraçamos o punitivismo. As defesas da prisão do MC Poze do Rodo e de Léo Lins põem esquerda e direita rigorosamente no mesmo lugar. De um lado, querem calar os músicos gente do Partido Novo, do MBL e esses tipos. Do outro, quer prender o humorista a patrulha dos bons costumes de esquerda. Um é incapaz de perceber que se porta como espelho do outro.
Claro. Ambos estão convencidos de que estão
do lado dos bons valores. Ambos defendem a dignidade humana. O outro é que não.
O que isso diz é simples: como sociedade, deixamos de acreditar em debate. Não
cremos ser possível convencer qualquer um de qualquer coisa. Ou impomos nossas
ideias a quem não pensa como nós ou a hecatombe ocorrerá. Cremos ser preciso
controlar o que o outro diz, pois certas ideias, se pronunciadas, levarão a
crimes terríveis contra boas pessoas. Há ideias que simplesmente são perigosas
demais para que se permita dizê-las em público. Alguns dirão: não é censura.
Ora, não se enganem. Censura é exatamente isso. Ambos convictos de que, nesse
caso, a censura é do bem.
Em toda época há um conjunto de valores
morais dominantes. Sempre há um conjunto de pessoas que se sentem incomodadas
com eles. A diferença é só uma. Hoje estamos profundamente divididos. Há dois
lados, ambos mais ou menos do mesmo tamanho, muito convencidos de seus
conjuntos de valores. Esses dois lados estão em oposição um ao outro.
Tornaram-se dois bandos moralistas. Claro, ninguém se considera moralista.
Moralistas são os outros. Nós? Nós preservamos os bons valores.
Ambos chegaram à conclusão de que não há mais
espaço para debate. É culpa das redes sociais, talvez. Ou dos fascistas. Ou de
quem quer corromper nossas crianças. Mas a conclusão é essa. O debate não
resolve. Ninguém quer se dar ao trabalho de convencer os outros. Por quê?
Porque os outros são irascíveis, insensíveis e, fundamentalmente, representam
valores desumanos.
Será que não percebem? A roda que gira as
motivações de ambos é a mesma. O olhar que lançam para o outro — ele é o mesmo.
Em momentos de grande pressão moralista,
sempre nascem artistas cujo trabalho é chocar. Jonathan Swift, Marquês de Sade,
Oscar Wilde, Lenny Bruce, Monty Python. Nélson Rodrigues. Todos, em seu tempo,
foram alvos de dedos em riste. É preciso calar. Claro, dirão: não é a mesma
coisa. Só que, no tempo, era. Chocava. Incomodava. E todos, rigorosamente
todos, foram censurados. Quando um artista que choca fala, o que ele realmente
faz? Ora, mostra aquilo que não toleramos. Podemos usar como plataforma para debater.
Podemos calar.
Pois é, a partir daí sociedades fazem sempre
uma de duas escolhas. Ou são tolerantes com o discurso que rompe os valores do
momento. Ou punem. A nossa pune. Nosso argumento é que o limite entre o que se
diz e a ação é tênue. Tratamos a fala como ação. Enunciar um crime é, em si, o
próprio crime. Por quê? Porque estamos convictos de que, ao enunciar um crime,
alguém sairá da plateia e cometerá qualquer ato horroroso.
O que a História diz é simples: estabeleça
que certas ideias não podem ser ditas e, em algum lugar, uma burocracia censora
surgirá. Pode ser no Executivo, no Judiciário ou no Legislativo. Mas surgirá.
Uma vez estabelecida, procurará o que deve ser censurado. No início, muita
gente achará razoável. Mas dê o poder de censura ao Estado, e ele censurará
mais, mais e mais.
O que a História não diz, porque não há
paralelo claro no passado, é o que acontece quando uma sociedade dividida em
dois pedaços mais ou menos iguais abraça o ímpeto censor em ambos os lados. (E,
de novo, não nos enganemos. Se subir ao palco e falar algo tem de ser punido
com cadeia, e os dois estão convencidos disso, é o pior dos ímpetos censores.)
Nesse cenário, ao menos um conforto devemos
buscar, nem que seja em respeito ao dicionário. Não vamos sair encarcerando
artistas em nome da democracia. Aí já é demais. Autoengano tem limite.
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