terça-feira, 10 de junho de 2025

Mas será que não percebem? – Pedro Doria

O Globo

Não é razoável prender alguém por contar piadas. Não é razoável prender alguém por cantar músicas ou recitar poemas ou escrever livros. Se chegamos ao ponto de não achar sequer razoável algo assim, é porque perdemos a noção do que uma democracia quer dizer. Não é só isso: deixamos de fingir ser garantistas e abraçamos o punitivismo. As defesas da prisão do MC Poze do Rodo e de Léo Lins põem esquerda e direita rigorosamente no mesmo lugar. De um lado, querem calar os músicos gente do Partido Novo, do MBL e esses tipos. Do outro, quer prender o humorista a patrulha dos bons costumes de esquerda. Um é incapaz de perceber que se porta como espelho do outro.

Claro. Ambos estão convencidos de que estão do lado dos bons valores. Ambos defendem a dignidade humana. O outro é que não. O que isso diz é simples: como sociedade, deixamos de acreditar em debate. Não cremos ser possível convencer qualquer um de qualquer coisa. Ou impomos nossas ideias a quem não pensa como nós ou a hecatombe ocorrerá. Cremos ser preciso controlar o que o outro diz, pois certas ideias, se pronunciadas, levarão a crimes terríveis contra boas pessoas. Há ideias que simplesmente são perigosas demais para que se permita dizê-las em público. Alguns dirão: não é censura. Ora, não se enganem. Censura é exatamente isso. Ambos convictos de que, nesse caso, a censura é do bem.

Em toda época há um conjunto de valores morais dominantes. Sempre há um conjunto de pessoas que se sentem incomodadas com eles. A diferença é só uma. Hoje estamos profundamente divididos. Há dois lados, ambos mais ou menos do mesmo tamanho, muito convencidos de seus conjuntos de valores. Esses dois lados estão em oposição um ao outro. Tornaram-se dois bandos moralistas. Claro, ninguém se considera moralista. Moralistas são os outros. Nós? Nós preservamos os bons valores.

Ambos chegaram à conclusão de que não há mais espaço para debate. É culpa das redes sociais, talvez. Ou dos fascistas. Ou de quem quer corromper nossas crianças. Mas a conclusão é essa. O debate não resolve. Ninguém quer se dar ao trabalho de convencer os outros. Por quê? Porque os outros são irascíveis, insensíveis e, fundamentalmente, representam valores desumanos.

Será que não percebem? A roda que gira as motivações de ambos é a mesma. O olhar que lançam para o outro — ele é o mesmo.

Em momentos de grande pressão moralista, sempre nascem artistas cujo trabalho é chocar. Jonathan Swift, Marquês de Sade, Oscar Wilde, Lenny Bruce, Monty Python. Nélson Rodrigues. Todos, em seu tempo, foram alvos de dedos em riste. É preciso calar. Claro, dirão: não é a mesma coisa. Só que, no tempo, era. Chocava. Incomodava. E todos, rigorosamente todos, foram censurados. Quando um artista que choca fala, o que ele realmente faz? Ora, mostra aquilo que não toleramos. Podemos usar como plataforma para debater. Podemos calar.

Pois é, a partir daí sociedades fazem sempre uma de duas escolhas. Ou são tolerantes com o discurso que rompe os valores do momento. Ou punem. A nossa pune. Nosso argumento é que o limite entre o que se diz e a ação é tênue. Tratamos a fala como ação. Enunciar um crime é, em si, o próprio crime. Por quê? Porque estamos convictos de que, ao enunciar um crime, alguém sairá da plateia e cometerá qualquer ato horroroso.

O que a História diz é simples: estabeleça que certas ideias não podem ser ditas e, em algum lugar, uma burocracia censora surgirá. Pode ser no Executivo, no Judiciário ou no Legislativo. Mas surgirá. Uma vez estabelecida, procurará o que deve ser censurado. No início, muita gente achará razoável. Mas dê o poder de censura ao Estado, e ele censurará mais, mais e mais.

O que a História não diz, porque não há paralelo claro no passado, é o que acontece quando uma sociedade dividida em dois pedaços mais ou menos iguais abraça o ímpeto censor em ambos os lados. (E, de novo, não nos enganemos. Se subir ao palco e falar algo tem de ser punido com cadeia, e os dois estão convencidos disso, é o pior dos ímpetos censores.)

Nesse cenário, ao menos um conforto devemos buscar, nem que seja em respeito ao dicionário. Não vamos sair encarcerando artistas em nome da democracia. Aí já é demais. Autoengano tem limite.

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