O Estado de S. Paulo
Chegou a hora de o governo e o Congresso discutirem, com o setor privado, políticas inovadoras para definir o lugar do Brasil no mundo
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, inaugurou, em abril passado, o projeto Pátria Grande do Sul, no Estado de Bolívar, no sul do país, na fronteira com Roraima. Foram entregues 180 mil hectares de terra ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que fará um trabalho em conjunto com o governo venezuelano para ampliar a produção de alimentos seguindo o viés da agroecologia. De acordo com Maduro, serão produzidos 30 mil hectares de feijão, além de frutas, mamão, cana-de-açúcar, inhame, frango, carne de porco, carne bovina e seus derivados, vegetais, milho e galinhas. O MST também prepara a produção de um banco de sementes nativas tradicionais e um viveiro de mudas para reflorestamento.
A coordenadora da brigada do MST na
Venezuela, Rosana Fernandes, afirmou que o projeto é um modelo de produção
agroecológico, com formação política e técnica. De acordo com ela, o projeto
demonstra o compromisso do movimento com a revolução bolivariana. O MST atua no
país há quase 20 anos em parceria com as comunas venezuelanas, ajudando em
projetos de agroecologia, além de formação técnica e produção de alimentos
orgânicos.
Além da cooperação do MST com o governo
venezuelano, no dia 12 de abril passado, o Diário Oficial da União publicou
memorandum de entendimento estabelecendo as bases de cooperação técnica entre o
Itamaraty e três ministérios venezuelanos da área de agricultura e alimentação
e com comunidades e movimentos sociais. As atividades de cooperação deverão ser
implementadas pelos Ministérios do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura,
pela Conab e pela Embrapa.
Não houve qualquer manifestação oficial do
governo brasileiro sobre o assunto. Enquanto isso, como parte da Jornada de
Luta das Mulheres Sem Terra, o MST promoveu mais de 70 ações de protesto e
invasões entre os dias 11 e 14 de março, em todas as regiões do Brasil.
Depois das sucessivas controvérsias criadas
pelo apoio de Lula a Maduro na contestada eleição presidencial e de ataques
públicos de Maduro a Lula, o governo brasileiro conduz o relacionamento
bilateral de maneira discreta. A negociação desses acordos e da participação do
MST no projeto Pátria Grande do Sul foi feita com a intermediação do governo
brasileiro, por meio do Itamaraty.
Enquanto esses acordos estavam sendo
negociados e assinados, o Brasil, que representa os interesses da Argentina na
Venezuela, não conseguiu convencer Maduro a autorizar que cinco venezuelanos
exilados deixassem a Embaixada da Argentina, submetidos a toda sorte de
restrições. Em vez disso, tomou conhecimento do resgate dos venezuelanos pelo governo
americano feito à revelia do Brasil, responsável pela guarda da Embaixada da
Argentina. Esses acordos na área agrícola teriam sido uma oportunidade para, em
troca, obter a concordância de Maduro para a saída dos exilados.
Diante da maneira como a política externa em
relação à Venezuela está sendo tratada – avanço com toda a discrição para
evitar a repercussão negativa interna –, poderemos ter novas surpresas nas
próximas semanas e meses.
Maduro fez pronunciamento voltado à política
interna em que faz novas ameaças relacionadas à ocupação do território do
Essequibo na Guiana. Aliás, nas recentes eleições para o Congresso venezuelano
foram eleitos representantes para Essequibo, antecipando eventual ocupação
daquele território.
Do ponto de vista da credibilidade do
Itamaraty, o resgate dos venezuelanos e a ausência de reação do governo de
Maduro às repetidas manifestações do governo brasileiro com o objetivo de obter
o salvo-conduto para os venezuelanos foram um claro sinal de perda de
influência, ampliada pela burocrática explicação em nota oficial da
chancelaria.
Com o agravamento do cenário internacional em
relação às sucessivas crises e os EUA continuando a impor sua agenda econômica
e política, não deixa de causar preocupação a maneira como o governo brasileiro
está atuando. São exemplos recentes a visita do presidente Lula a Moscou para
participar, ao lado de cerca de 20 presidentes e primeiros-ministros de países
reconhecidamente autocráticos, das celebrações do Dia da Vitória da Rússia na
Grande Guerra Patriótica; a participação do encontro da Comunidade de Estados
Latino-americanos e do Caribe em Pequim, seguida de uma bem-sucedida visita de
Estado à China; e declarações, na visita à França, sobre a guerra na Ucrânia.
Lula instruiu o Itamaraty a reagir fortemente, como uma ameaça à soberania
brasileira, caso o governo Trump imponha sanções contra ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) com base em alegação de que o Judiciário brasileiro
restringiu a liberdade de expressão de cidadão norte-americano – no caso,
ninguém menos do que Elon Musk.
Em tempos bicudos, em que o secretário de
Defesa dos EUA trata a América Latina como o quintal dos EUA e Trump diz que
talvez os países da região tenham de optar entre os EUA e a China, seria contra
o interesse nacional se o governo brasileiro se alinhasse a qualquer dos lados
e abandonasse a posição de independência e equidistância por motivação
ideológica ou partidária.
Chegou a hora de o governo brasileiro e o
Congresso Nacional discutirem, com o setor privado, políticas inovadoras para
definir o lugar do Brasil no mundo.
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