Valor Econômico
Maré baixa com a qual Bolsonaro chega à reta
final do julgamento não traz alívio para o governo
A cena foi captada pelo fotógrafo do Supremo
Tribunal Federal, Ton Molina. O ex-presidente Jair Bolsonaro sorri,
benevolente, enquanto aperta a mão do tenente-coronel Mauro Cid no auditório da
Primeira Turma. O ex-ajudante de ordens retribui o cumprimento e aperta os
lábios num sorriso constrangido. Quando andava lado a lado com Bolsonaro, que
tem 1,85m, seu ex-ajudante de ordens lhe alcançava os ombros. Ontem, ao
cumprimentá-lo de lado no auditório, parecia ainda menor.
A cena, que aconteceu antes do início da sessão, não encontrou sua tradução no depoimento do ex-ajudante de ordens. A benevolência de Bolsonaro com o colaborador sem o qual a denúncia dificilmente teria evoluído para este julgamento não colheu a cumplicidade do seu ex-ajudante de ordens. Mauro Cid foi ameno com o ex-chefe, mas repetiu, em grande parte, o que havia dito na delação premiada do ano passado, inclusive a edição da minuta golpista por Bolsonaro, que deixaria o ministro relator, Alexandre de Moraes, como o único preso em decorrência do ato presidencial.
Frente à frente com Moraes pela primeira vez
desde março, quando esteve na sessão em que o STF aceitou a denúncia, Bolsonaro
se manteve atento aos depoimentos. Manteve-se sentado, de braços cruzados, ao
lado do seu advogado. De vez em quando, levava as mãos ao rosto e as deslizava
pelo nariz. Soprou ao ouvido de Celso Villardi ao ouvi-lo perguntar a seu
ex-ajudante de ordens se o ex-presidente havia dito: “Se não for encontrada
fraude nada vai acontecer”. A leitura labial só permitiu decifrar, do sopro do
ex-presidente, a palavra “Constituição”. Villardi voltaria ao tenente-coronel
com uma variação em torno do mesmo tema: Cid teria ouvido o presidente dizer
que só agiria dentro das quatro linhas? “Sim, senhor”, respondeu o ex-ajudante
de ordens.
Mais suave do que em outras sessões
transmitidas pela TV Justiça da ação penal da trama golpista, Alexandre de
Moraes manteve a urbanidade com os advogados e até com Luiz Fux, o único de
seus colegas presente ao depoimento. Na aceitação da denúncia pela Corte, Fux
havia manifestado inconformidade com as sucessivas delações de Cid e dito que
queria, ele mesmo, inquiri-lo.
Ao se dirigir ao ex-ajudante de ordens, Fux
pediu que ele discorresse sobre o termo “bravata”, usado por Mauro Cid na
delação. Encaminhava-se na mesma direção do ex-ministro Aldo Rebelo que, na
fase da oitiva de testemunhas, confrontou Moraes ao dizer que a fala golpista
do ex-comandante da Marinha, Almir Garnier, não podia ser levada ao pé da
letra. Depois Fux fez pergunta de advogado, que costuma inquirir sabendo a
resposta que vai ouvir, ao querer saber de Cid se a minuta havia sido assinada
por Bolsonaro. “Não”, disse Cid, confirmando a delação. Foi apenas na terceira
provocação que Moraes reagiu a estratégia do colega. Depois de Fux ouvir um
“não” de Cid à pergunta se ele abrira o pacote que lhe havia sido entregue pelo
general Braga Neto para fomentar o golpe, Moraes emendou: “Mas sabia que era
dinheiro [o conteúdo do pacote]?”. Mauro Cid manteve a delação: “Sabia”.
Frequentemente acometido de lapsos de
memória, ao ser indagado sobre detalhes dos fatos descritos, como se
pretendesse manter saídas abertas para os réus da ação, o ex-ajudante de ordens
preservou o conjunto da obra da delação, que descreve a série de reuniões,
mensagens e iniciativas dos réus em consonância com os cinco crimes pelos quais
são acusados: tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito,
tentativa de golpe de Estado, envolvimento em organização criminosa armada,
dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Pelo ritmo dos depoimentos, que seguem a
ordem alfabética dos réus, é possível que Bolsonaro seja ouvido apenas na
quarta-feira. É sob revezes que chega a esta fase do processo. A fuga de Carla
Zambelli atrapalhou o discurso de que o processo fere o Estado Democrático de
Direito. As garantias constitucionais proporcionadas até o trânsito em julgado
resultaram na sua fuga.
A segunda razão pela qual o clima está mais
azedo que o esperado é que os dois personagens que estavam unidos na persecução
penal contra Moraes, Donald Trump e Elon Musk, romperam e arrumaram encrencas
maiores para lidar. E, finalmente, o terceiro dado negativo da conjuntura para
o ex-presidente é que a última rodada Genial/Quaest mostrou que a direita tem
alternativa a Bolsonaro com a competitividade dos governadores de quatro
Estados (SP, MG, PR e GO), além da ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, ante a
postulação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela reeleição.
A maré baixa de Bolsonaro não é cheia do
outro lado da Praça. A reta final do julgamento do ex-presidente demonstra a
autonomização do STF ante o Executivo. Um desfecho condenatório contra o
Bolsonaro com a comprovação da trama golpista não refresca a situação do
governo, encalacrado na única frente ampla que conseguiu produzir desde a posse
de Lula, a dos adversários da política fiscal. O presidente ainda terá que se
defrontar com um subproduto desse julgamento que é a aproximação dele
decorrente entre seu antecessor e o governador de São Paulo, condição para a
entrada de Tarcísio de Freitas na disputa presidencial de 2026.
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