No momento em que se desencadeiam o processo e o debate eleitoral de 2014, a sociedade brasileira passa a querer uma Nova Política e um compromisso efetivo e responsável com o desenvolvimento do país, sintetizados no lema “Queremos mais porque podemos mais”. Precisamos superar a visão que vem se cristalizando de que o Bolsa Família é intocável ede que qualquer crítica ao programa é fazer coro com as forças conservadoras e de “direita”.
As políticas assistenciais no Brasil,na América Latina e, por que não dizer, em todo o mundo têm, muito mais do que um viés, um conteúdo essencial de dominação e um compromisso atávico de manutenção e reprodução da pobreza. Em geral, as políticas assistenciais – e aqui pretendo focar o Bolsa Família – não têm pressupostos nem mecanismos de gestão capazes de manter uma articulação produtiva com o mundo do trabalho e com o tão almejado e decantado desenvolvimento sustentável.
Antes de tudo, é necessário contextualizar o Bolsa Família, em dimensão histórica, no âmbito da política social brasileira nas últimas décadas. O programa, que ganhou escala e feitio de política universal de assistência social, não começou no governo do PT. Tem uma história, cujo marco inicial como política pública se deu em Campinas, na década de 1980, na gestão de José Roberto Magalhães, do PSDB. Teve o grande marco legislativo em 1992, com o Programa de Renda Mínima do Senador Eduardo Suplicy. No governo Itamar, no âmbito do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, houve um ambiente muito favorável ao debate e à introdução da “renda básica de cidadania”como estratégia privilegiada no combate à fome e à miséria.
Estas propostas se intensificaram após a aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), em dezembro de 1993,e contribuíram decisivamente para a elaboração do desenho e da articulação de atores do governo e da sociedade responsáveis pela criação e implantação do Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) já em 1995, no início da gestão de Fernando Henrique. Posteriormente, outras politicas sociais setoriais foram complementadas com programas de transferência de renda, como o Bolsa Alimentação e o Bolsa Escola.No âmbito estadual, o pioneirismo coube ao Governador Cristovam Buarque, que transformou o Bolsa Escola do PT/Distrito Federal em estratégia privilegiada de melhoria do desempenho escolar.
Sem dúvida, a unificação, a maior presença e coordenação federal, o cadastro único e o grande impacto do programa, que hoje beneficia 1 em 4 brasileiros, ou seja, quase 50 milhões de pessoas, tudo isso o diferencia e o distancia substantiva e qualitativamente dos programas de transferência de renda dos governos anteriores.
A dimensão e as especificidades que o Bolsa Família ganhou no governo Lula e que vêm se consolidando no governo Dilma impõem uma analise cuidadosa, um olhar diferenciado também pelo seu significado não só social, mas, sobretudo, politico e econômico, nos aspectos positivos e negativos. Hoje, o Bolsa Família é muito mais uma estratégia politica e econômica segundo um modelo de consumo e baixo desempenho produtivo à beira do esgotamento, do que uma estratégia compensatória para setores populacionais em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade.
Sabe-se que a população de rua, cada vez mais crescente nos grandes centros urbanos, não é beneficiária do programa, até por dificuldade de acesso aos seus mecanismos burocráticos, e que alguns beneficiários, justamente os mais necessitados de apoio psicossocial, são desligados por não se enquadrarem em critérios de elegibilidade ou não prestarem contrapartida. Tal realidade clama por respostas urgentes com diretrizes e recursos do governo federal.
O programa Bolsa Família, sem dúvida, tem sido capaz de resgatar milhões de pessoas da miséria e de uma exclusão mais severa. Pode até ter um sentido humanitário, pode ter um impacto significativo para uma política de consumo que estimula o mercado interno, quanto às necessidades básicas das pessoas, mas não consegue superar a pobreza nem tampouco ser uma força propulsora do desenvolvimento no sentido sustentável e pleno.
Em outras palavras, o Bolsa Família é uma estratégia eficiente num modelo de desenvolvimento baseado no consumo, mas não se sustenta e pode até inibir uma perspectiva de sustentabilidade e de necessário aumento de insumos ao crescimento econômico. Por isso, defendemos o fortalecimento do programa, preservando sua lógica de transferência de renda não contributiva, instituída na Lei Orgânica da Assistência Social (Governo Itamar, dez.1993). Defendemos o programa não só como aliado e parceiro, mas, sobretudo, como indutor do desenvolvimento sustentável, com um olhar prioritário para os grupos cuja vulnerabilidade e necessidades especificas os têm colocado à margem da proteção social.
Repensar o Bolsa Família impõe mudança de paradigma e mudança nos mecanismos de gestão: ao invés de excluir as pessoas que melhoram o padrão de vida, ingressam no mercado formal, melhoram o nível educacional e se inserem numa atividade produtiva empreendedora, o programa deveria manter o beneficio e, também, estimular e premiar tal esforço e conquista por um longo prazo. De preferência, como renda vitalícia.
O Bolsa Família deveria ser, antes de tudo, uma política econômica inclusiva, que traga segurança e estímulo ao trabalho e à melhoria da qualidade de vida, e não uma política social compensatória, instável e submetida a critérios muitas vezes discricionários e externos ao arbítrio individual.O Bolsa Família deveria ser o maior estímulo para a inserção no mundo do trabalho e não um desestimulo para esta inserção pelo medo da perda do beneficio ou por acomodação da parte de quem antes nada tinha e agora tem muito pouco.
A lógica e os mecanismos que o programa impõe levam alguns indivíduos a se acomodarem, a se contentarem com pouco e a não almejar um novo padrão de vida que efetivamente resgate o verdadeiro potencial humano produtivo, os direitos humanos e o acesso aos bens da civilização. Segundo este novo paradigma, o Bolsa Família pode deixar de ser gasto social e constituir, de fato, investimento. Só assim o Brasil poderia enunciar um novo modelo de política assistencial indutora do desenvolvimento sustentável, capaz de inspirar internacionalmente movimentos análogos de inserção produtiva e afirmação da cidadania.
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Denise Paiva é assistente social e ex-Assessora de
Assuntos Sociais da Presidência da República no Governo Itamar Franco.
2 comentários:
Excelente. E com o acréscimo dos juros que a sociedade brasileira está a pagar por causa destas politicas mal aplicadas: índice de consumo do crack por via indireta(pais e avós a financiarem), elevação da gravidez precoce e índice de jovens sem quererem estudar ou trabalhar.
Exelente resgate da criação do Bolsa família Denise. Você coloca com clareza o desvirtuamento desse programa que de compensatório,intimamente relacionado à educação se transformou exclusivamente num mecanismo de estímulo ao consumo. De fato, é preciso retomar os pressupostos originais que nortearam a criação do Programa.Você coloca muito bem a necessidade de incluí-lo na política de assistência social interligado à educação e ao trabalho.Acho que essa mudança deve ser mesmo de caratér normativo e, além disso, a sociedade exige transparência: quem são estes beneficiários de fato? Quais são os critérios de escolha? Trabalhamos tanto no passado com critérios, mapa da fome, estatísticas da pobreza, mecanismos indispensáveis para a evolucão da política social. Ao contrário, hoje não sabemos quem são,qual o impacto do benefício e a porta de saída do Programa, enfim foi-se tornando uma caixa preta.
Parabéns pelo artigo.
Maria Amélia Sasaki.
Socióloga e mestre em Psicologia Social.
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