terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Clóvis Rossi - Um cadáver no colo de Cristina

• Será quase impossível para o governo argentino provar que nada tem a ver com a morte do promotor Nisman

- Folha de S. Paulo

É sempre mais fácil provar que alguém cometeu um crime do que o acusado provar que não o cometeu.

Por isso, o governo argentino será, talvez para sempre, acusado de ter mandado matar o promotor Alberto Nisman. Ou, em outra hipótese, de tê-lo induzido ao suicídio, tese já levantada pela líder opositora Elisa Carrió.

Os antecedentes do caso tornam facílimo, quase automático, desconfiar do governo de Cristina Kirchner.

Nisman, pouco dias antes de morrer, já dissera que o chamado caso Amia (Associação Mutual Israel-Argentina) poderia "levá-lo à morte".

Previsão igualmente fácil de fazer: Nisman acusara a presidente e seu chanceler, Héctor Timerman, de encobrir a suposta culpa de funcionários iranianos pelo atentado de 1994 à sede da Amia (85 mortos, mais de 300 feridos).

A acusação dizia, ainda, que o encobrimento se deveria ao desejo do governo argentino de fazer negócios com o Irã.

É prematuro desconfiar da presidente e/ou de seu entorno? Sem dúvida, é. Afinal, prevalece sempre o critério de que todo mundo é inocente até prova em contrário.

Mas Cristina Kirchner cultivou sempre, nos 12 para 13 anos em que ela e o marido governaram o país, um ambiente de radicalização, de confronto, com os mais diferentes adversários, de resto sempre tratados como inimigos.

Paga agora essa crispação. Não há, nos setores com os quais se indispôs e que representam pouco mais ou menos a metade do país, a mais leve disposição para lhe dar ao menos o benefício da dúvida.

O governo, não necessariamente sua chefe, será tido como culpado até que consiga provar o contrário, o que é praticamente impossível.

Não há testemunhas da morte de Nisman nem há, que se saiba, uma carta anunciando o suicídio, por mais que Sergio Berni, secretário de Segurança Pública, haja dito que, nas circunstâncias, "todos os caminhos conduzem ao suicídio" (a arma sob o cadáver, a porta trancada por dentro).

O escritor Jorge Asís, antigo peronista, funcionário do governo de Carlos Menem, rebate: "Aqui é de um assassinato que temos de falar".

Mas Asís estende a lista de suspeitos para "alguma corrente interna do governo ou para uma operação de inteligência clara contra o governo".

Hipótese reforçada pelo fato de que Nisman havia acusado, além de Cristina e seu chanceler, também o líder "piquetero" Luís D"Elía e o líder do grupo Quebracho, de ultraesquerda, Fernando Esteche, ambos adeptos de métodos violentos.

É sempre bom lembrar que o peronismo tem uma longa história de movimentos violentos internos, de extrema direita ou de extrema esquerda.

Nos anos 70, por exemplo, a Aliança Anticomunista Argentina (a tristemente célebre "Triple A") e os Montoneros travaram uma guerra que acabou desaguando no golpe de 1976 e no genocídio que se seguiu a ele.

É o que dá semear ventos. Colhem-se tempestades ou, neste caso, um cadáver que o governo terá imensas dificuldades para tirar do colo.

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