O Estado de S. Paulo / Aliás
Faz tempo que não se ouve neste País a palavra do verdadeiro educador. As reações ao projeto de reforma do ensino médio reiteram essa ausência. As carências da nação estão longe das cogitações e dos palpites atuais. Ninguém pensou nos ganhos significativos da educação brasileira, desde a proclamação da República, um dos quais a Universidade de São Paulo, uma revolução educacional que não dependeu de palpite e sim de ousadia, decisão, vontade.
Nós saímos da escravidão e de uma sociedade de braçais e analfabetos e chegamos a universidades que conseguiram em cerca de meio século o que universidades tradicionais levaram meio milênio para conseguir. Ninguém fala nos marcos e conquistas de escolas primárias e médias de pequenas localidades do interior do Brasil, que têm conseguido o reconhecimento dos primeiros lugares na escala do padrão de ensino. São escolas cujos êxitos não se explicam pela opinião dos palpiteiros, mas sim pelo calor afetivo da comunidade e das famílias, dos pais, que esperam que os filhos e netos tenham mais do que eles tiveram. Tradicionalmente, o Brasil é um país que valoriza a escola e a educação. Ainda há recantos da pátria em que crianças pobres da roça fazem sacrifícios enormes, longas caminhadas, para ir a uma escola. Vi nos confins do Maranhão e do Acre, em ranchos cobertos de palha, crianças de pés descalços sentadas em tamboretes, usando os joelhos como carteira escolar para escrever no caderno e aprender a lição.
A reforma curricular do ensino médio, proposta por medida provisória, centraliza a educação brasileira no português, na matemática e no inglês. O resto, por assim dizer, fica no plano secundário de decisões tópicas. Só uma explícita omissão de referência no cardápio educacional para as novas gerações, a suposta irrelevância da educação física, gerou gritos e berros. Não houve queixas similares em relação às artes e às humanidades. Ao que parece, queremos uma pátria de gente atlética, mesmo que ignorante.
Qual matemática num país em que mais se subtrai do que se divide? Qual inglês: para dizer ou para ouvir? Para pensar ou para obedecer? Como seremos compreendidos? Inglês para entenderem o que dizemos ou para que nos façam entender o que nos dizem? Para criar ou para copiar? Para sermos o outro ou para sermos nós mesmos? Por que não também o espanhol da lírica poesia de Mário Benedetti ou a de Juan Gelman, nossos vizinhos, se estão tão perto e não lá longe? Qual o português de que estão falando? O que se fala ou o que se escreve? O que se ouve ou o que se lê? Quem dirá à garotada que a língua não é feita só de palavras, mas também da poesia que dá sentido às palavras, a de Paulo Bomfim, a de Dalila Telles Veras, a de Francisca Júlia da Silva, a de Paulo Eiró, a de Fagundes Varela, a de Renata Pallottini, a de Mafra Carbonieri, a de Mário de Andrade, a de Castro Alves, a de Paulo Leminski, a de Carlos Vogt? Tem alguém aí, nessa provisória medida, que queira ouvir? Ou que possa falar mais que o provisório, o incompleto, o inacabado? Quem nos ensinará a língua do encontro na hora cinzenta do nosso desencontro?
Qual português? O de Machado de Assis e das exatidões gramaticais e não o da nossa inexatidão verbal ou o de Guimarães Rosa e dos nossos avessos, do que somos não sendo? Como vamos compreender essa complexa e contraditória diversidade do nosso nós sem a Sociologia? Como vamos compreender esse futuro de medida provisória sem o passado de nossa história, que demarca nosso horizonte e nossas incertezas? Como vamos ensinar às novas gerações o que somos no meramente provisório de uma medida burocrática? Como ter futuro sem passado?
Como ter pátria sem a geografia que nos diga que somos também um lugar? Como ter alguma certeza no meio de tanta incerteza? Como saber sem conhecer, conhecer sem aprender, aprender sem ter quem ensine? Como ter notório saber para ensinar sem ter aprendido para saber? Quem ensinará ao ensinador? Quem aprenderá no vazio das perguntas sem respostas?
Quem ensinará à garotada que a vida não é feita só de números, de regras gramaticais, de palavras invasoras de uma língua estrangeira? Quem nos ensinará a não gaguejar o que não somos para cantar o que somos? Quem nos ensinará que o nó da condição humana é razão, mas é também sentimento? Que a condição humana só é possível com esperança? Com o depois e não só o agora? Com a incerteza que desafia a criatividade e não só com a certeza das coisas prontas? Quem nos ensinará que a vida não é só direitos e desfrutes, mas também deveres e renúncias?
Por que a prisão desses limites e não a liberdade do sol numa sala de aula? Quem abolirá a escuridão da escola, como um dia abolimos a escravidão? Quem educará o governante que nos governará amanhã? Quem lhe dirá quem somos e o que podemos ser? Quem lhe dirá o que não somos nem queremos ser? Quem dirá o abre-te sésamos para que possamos sair? Quem aprisionará o Alienista para libertar Machado de Assis e o brasileiro que nele somos? Quem?
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José de Souza Martins, sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor entre outros livros de A sociabilidade de homens simples (Contexto)
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