- Valor Econômico
Debate sobre juros parece não ter fim
Os artigos de André Lara Resende sobre juros, publicados aqui no Valor Econômico, continuam a gerar polêmica. O debate parece não ter fim. Boa parte da discussão é inacessível aos não versados nas sutilezas das fórmulas matemáticas. Na realidade, a discussão teórica e propostas concretas acerca dos juros não estão no centro da mesa. Em última análise, o eixo que move o debate são as convicções e a fé no poder das políticas ortodoxas de austeridade fiscal. Pode-se questionar o dogma?
Lara foi criticado, senão censurado, por falta de senso político e de oportunidade. Suas dúvidas foram vistas como devaneios próprios ao mundo acadêmico, mas trazê-las ao grande público, questionando convicções arraigadas, comportaria um grande risco. No momento, flertar com alternativas heterodoxas municiaria os adversários do ajuste fiscal. Não haveria outra saída senão engolir a pílula amarga, purgar os pecados e pagar as contas contraídas.
Arminio Fraga foi direto ao ponto. O Brasil adoraria atalhos. Em aparecendo a oportunidade, escaparia do caminho traçado para, uma vez mais, protelar o ajuste. Arriscou-se no campo da "antropologia e sociologia" para vaticinar: "Todos querem manter privilégios que envolvem gastos públicos", as tais meias-entradas e o jeitinho de que falam Marcos Lisboa e Samuel Pessoa, críticos de primeira hora de Lara Resende. Em suma, qualquer desvio de rota, seria o retorno à velha "complacência com a inflação" e prova de que as "lições do passado" não foram assimiladas.
Para os críticos de Lara Resende, portanto, seria necessário um comprometimento absoluto com o ajuste fiscal. Chama a atenção a força da convicção que move os defensores das políticas ortodoxas. Ter dúvidas equivaleria à vacilação, quando não à traição, e a uma aliança perigosa com os adversários interessados em defender seus privilégios. Fora do dogma, não existiria salvação. A crítica, ou melhor, a defesa da ortodoxia, combina pureza de princípios e o apelo aos verdadeiros interesses da população. Fora da austeridade, imperaria a defesa do privilégio. O dogma se alimenta de certezas, não aceita críticas. Qualquer desvio é o começo do fim, atalho de complacência que, se usado, corroiria a convicção dos que conhecem o verdadeiro caminho.
Não deixa de ser irônico que Lara Resende seja chamado às falas por flertar com alternativas heterodoxas. Já o fez no passado e com bons resultados. A essência do Plano Real, a ideia de que a inflação tinha um componente inercial, não estava no livro texto.
À época, não é demais lembrar, o pensamento ortodoxo brandia as mesmas certezas e responsabilizava o sistema político pelo insucesso das políticas ortodoxas implementadas. A persistência da inflação era creditada à fragilidade do Poder Executivo, à sua incapacidade de impor cortes de gastos necessários ao combate consequente da inflação. Sem uma reforma política seria impossível debelar a inflação. Os erros dos economistas de plantão eram creditados na conta dos políticos. O remédio matava o doente e tudo que o médico tinha para oferecer eram doses mais potentes do mesmo remédio, passando a culpa para o enfermeiro que aplicava a medicação.
O Plano Real mostrou que economistas nem sempre sabem lidar com os problemas com que se defrontam, mas que sempre encontram um bode expiatório que lhes salva a pele. A política proposta nunca é aplicada integralmente. Basta inserir a política (ou uma antropologia e sociologia bamba) na equação para justificar seus próprios erros. Na atual conjuntura, a ladainha começa a ser repetida. As políticas econômicas adequadas estariam à disposição, prontas para serem aplicadas. O problema maior seria gerar o apoio político capaz de lhes dar vida e sustentação. Toda e qualquer dúvida alimentaria a falta de determinação dos políticos e da própria sociedade para purgar seus pecados.
A alusão aos atalhos e 'boquinhas' sugere que a história política pós Plano Real pode ser recontada como uma luta entre os reformistas convictos e os complacentes com a indisciplina fiscal. Mesmo quando aprovadas, reformas teriam ficado aquém das necessidades por culpa ou com apoio dos complacentes. Tudo se passa como se a política econômica do país não tivesse sido controlada, na maior parte do tempo, por economistas comprometidos com a ortodoxia, como se suas receitas nunca tivessem sido aplicadas.
Seus planos foram executados e não por pouco tempo e, mais importante, sem trazer a redenção prometida. Esta é a questão de fundo que alimenta as preocupações de Lara Resende. Como afirma em seu segundo artigo, doses maciças do mesmo remédio têm sido aplicadas e a doença não dá sinais de ceder. Deve-se continuar prescrevendo a mesma receita?
Não se trata de defender privilégios. Aliás, as coisas seriam realmente bem mais fáceis se tudo que houvesse por fazer fosse limar as distorções persistentes e resistentes. Não se trata tampouco de defender a irresponsabilidade fiscal. Todos concordam que ajustes são necessários e, mesmo, inadiáveis. Trata-se, isto sim, de considerar alternativas e, sobretudo, de discutir a sério os custos sociais envolvidos. A reforma da Previdência, como proposta, para dar um exemplo, vai muito além do corte de privilégios e penduricalhos. Os custos sociais envolvidos não podem ser colocados automaticamente na coluna da defesa dos interesses corporativos. Discutir o tema, portanto, não é sinal de complacência. A discussão é legítima e necessária. Quem vai pagar a conta?
Não é a primeira vez que a sociedade brasileira é convocada a fazer sacrifícios em nome de um futuro melhor. Já o fez por um longo tempo sem que os resultados prometidos se materializassem. Renova-se a convocação sob os mesmos termos. Há razões de sobra para ter dúvidas de que desta vez a redenção virá.
*Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
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