- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A agressão violenta de um aluno de 15 anos de idade contra uma professora em Santa Catarina traz à tona a questão de fundo das formas cotidianas de violência no Brasil. Especialmente na área da educação, nas escolas públicas, mesmo nas universidades.
Não é necessário que o professor sangre, como neste caso, para que a violência se configure. Sem contar que a violência contra os docentes esconde, de fato, um movimento difuso cuja consequência será a destruição da escola pública, laica e gratuita. Não obstante agentes dessa violência sejam jovens com cara e nome, cabe, sim, perguntar: quem está por trás deles? Qual a causa de quem conspira contra a escola pública dizendo que a defende com a violência física e moral contra o professor e a instituição?
As frequentes invasões de escolas, de salas de aula, as ações para impedir aulas e conferências, os cadeiraços para impedir o acesso de professores e alunos aos recintos de atividades pedagógicas constituem deplorável manifestação de gravíssima ruptura entre o ato de ensinar e o ato de apreender. Isso até pode não ferir o corpo de um professor, mas fere sua alma, o sentido último de sua motivação para o magistério com todas as renúncias materiais e sociais que a opção pelo magistério envolve.
Aliás, se os governos não tratam os professores com respeito, como esperar que os alunos o façam? As duas modalidades de desrespeito significam uma coisa só: na área da educação, o Brasil está fazendo a opção preferencial pela ignorância. Cada minuto a menos de educação na educação já reduzida a mero intervalo entre férias, feriados, feriadões, folgas e paralisações constitui irremediável supressão no rumo de um país cada vez mais sem futuro.
Esse caso do aluno, reincidente, e outros casos similares nos falam de uma reformulação radical da conduta do brasileiro em nome de uma concepção de direito: a do direito desvinculado de deveres, desprovido do sentido da reciprocidade, a do justiçamento confundido com justiça, na intolerância com as diferenças de raça, de origem, de gênero, de ideologia, de crença, de escolarização.
Na escola indisciplinada e na chamada militância, os brasileiros que mais urram do que falam e pensam suprimiram a premissa socialmente essencial da alteridade, a figura referencial do Outro, em cuja mediação nos humanizamos e nos civilizamos.
No fim da ditadura, um surto de opção pela liberdade incondicional proclamou o nunca mais à tentação do autoritarismo. Nas escolas, porém, faltou a pedagogia da liberdade, a do direito como direito comprometido com os direitos dos outros, enquanto versão civilizada dos deveres sociais, o direito como contrapartida da prática da cidadania. O cidadão sem deveres que legitimem seus direitos não é cidadão, é parasita.
O caso de Santa Catarina é ilustrativo das contradições e irracionalidades expressas na ocorrência. Não é o aluno, não é a professora. O murro violento e sem motivo que o justifique é indefensável. Mesmo no encaminhamento do aluno à direção da escola por indisciplina na sala de aula, motivo da agressão, a professora cumpria norma tradicional e justa do sistema escolar.
O aluno ignorante impõe ao sistema escolar sua pedagogia do opressor. Ele não quer atingir apenas o docente. Ele quer atingir seus colegas, puxá-los para baixo. Quer socializar a ignorância antissocial.
As reações do público foram contraditórias, quando ficou claro que a professora é uma ativista política. Sê-la está no seu direito. Mas, em suas manifestações públicas anteriores, justificara que alguém tivesse atirado um ovo num presuntivo candidato a presidente da República, de orientação ideológica oposta à sua. Mesmo sendo ele um candidato que se esmera na radical intolerância a ideias e concepções diversas das dela, nada justifica o ato nem justifica o pretexto que sustenta a opinião da professora em favor da violência contra o outro.
Na verdade, nem quem atirou o ovo nem quem deu o soco tem razão. A violência do ovo aumenta a simpatia pelo candidato intolerante porque muita gente pensa como ele e é, para muitos, demonstração de que ele supostamente tem razão em seu autoritarismo de direita quando se insurge contra o autoritarismo de esquerda. A intolerância da professora trouxe aplausos nas redes sociais, não a ela, mas ao imaturo que desfechou o soco em seu rosto.
O que se vê nesse caso é a difusão e consolidação de uma cultura fascista, a da vingança, a do cala a boca, a da tese de que é legítimo calar o outro, quem é diferente. Cultura de um povo capturado por uma concepção infeliz da vida social, de alegria meramente carnavalesca, não mais a alegria da realização, mas a falsa alegria da frustração.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto).
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