- O Estado de S.Paulo
Salta aos olhos que cedo ou tarde teremos de levar a sério o tema da reforma política
É do saudoso Luiz Gonzaga, cantador e sanfoneiro nordestino, uma das mais deliciosas sacadas da música popular brasileira: o baião Dezessete e setecentos. Para você que não se lembra, aqui vai o refrão: “Eu lhe dei vinte mil-réis/ pra pagar dois e trezentos/ vancê tem que me vortá/ ...Dezesseis e setecentos! Dezessete e setecentos! Dezesseis e setecentos!...”.
Aguardo ansiosamente o dia em que o IBGE nos dirá quantas de nossas crianças de 10 anos de idade sofrem para dominar a velha e boa tabuada, mas adianto que essa é uma minúscula fração do que precisamos levar em conta para compreender as misérias que ora nos afligem como povo. E, principalmente, para começarmos a entender a situação com que nos vamos deparar dentro de dez ou vinte anos, se não conseguirmos escapar do que se tem chamado “armadilha da renda média”. Recorro a essa expressão para designar os países que chegaram até com certa facilidade aos dez ou doze mil dólares de renda anual per capita, mas não conseguem dar o salto para a casa dos vinte mil dólares.
Meu grande temor é que o modesto êxito que venhamos a lograr nos próximos meses, graças sobretudo ao ajuste fiscal, nos leve a uma acomodação descabida. Se não nos mantivermos atentos e fortes, as lagostas corporativistas incrustadas no casco daquela grande embarcação ancorada no Planalto Central nos manterão no estado atual, ou seja, prisioneiros da mencionada armadilha.
Tudo me leva a crer que o nosso grande mal como povo é o que os gregos denominavam akrasia. Acrático é o indivíduo ou o povo que se mostra incapaz de fazer o que sabe ser possível e necessário. Há mais de um século, o mais claro sintoma de nossa akrasia tem sido o ufanismo, atualmente exemplificado pela infindável repetição de que “somos a décima maior economia do mundo”, ou de que “podemos alimentar o mundo inteiro e ainda ficaremos com uma bela sobra”.
A variante mais grave da referida incapacidade é, porém, nossa tendência a supor que a “armadilha da renda média” é um estado estacionário, com o qual podemos conviver indefinidamente. Crescendo 3% ao ano – felicidade que decididamente não está à vista – levaremos uma geração inteira para dobrar a pífia renda de que hoje dispomos, algo entre onze e doze mil dólares anuais. A parcela da sociedade que aufere tal renda não é uma “classe média”, é uma camada muito acima dela. A verdade é que o Brasil não tem uma classe média digna do nome, e não tem por três razões muito simples. Uma classe média se faz com empregos estáveis, com perspectivas de carreira, propriedades pequenas e médias e educação de qualidade. Abaixo dela, como ninguém ignora, temos um oceano de miseráveis.
Essa situação nada tem de estacionária. Sem uma vigorosa retomada do crescimento econômico, com substancial aumento dos investimentos e da produtividade e um rápido preenchimento do espaço reservado a uma futura classe média, teremos, isso sim, uma enorme elevação do nível dos conflitos e da violência de modo geral.
O difícil futuro a que me refiro não é um cenário para almas frágeis. Certos aspectos dele já se estão configurando e são suficientes para nos tirar o sono.
Considere-se, por exemplo, a questão do saneamento. Sabemos que só metade dos domicílios, se tanto, está ligada à rede pública de esgotos. Em outros aspectos, mesmo não sendo um profissional da área, atrevo-me a inquirir se não estamos no limiar de uma dramática regressão. As cercanias das grandes cidades, e mesmo certos bairros dentro delas, estão infestados de pernilongos Culex e mosquitos Aedes aegypti e registram aumentos importantes na população de escorpiões e – pasmem – até na de barbeiros!
Enganam-se redondamente as camadas de renda situadas muito acima da “armadilha da renda média” que se sentem invulneráveis a uma acelerada deterioração nas condições gerais de vida. Se o transatlântico for a pique, a primeira classe irá junto.
Tenho plena ciência de que não estamos na beira de um precipício. Fiz menção acima a avanços recentes, como na reforma da Previdência, e ao papel, justiça seja feita, que neles desempenhou a Câmara dos Deputados. E por mais difícil que seja defender tal tese neste momento, é também certo que temos um regime democrático razoavelmente organizado. Retornando, porém, à armadilha da renda média, salta aos olhos que cedo ou tarde teremos de levar a sério o tema da reforma política. Ele tem estado em debate há mais de trinta anos e os resultados, convenhamos, são modestos.
Nosso sistema político é pateticamente deficitário no que se refere à capacidade de agregar interesses e direcioná-los para objetivos relevantes, de mais longo prazo. Desse ponto de vista, a organização partidária deveria ser o alfa e o ômega. Mas que protagonismo tiveram os partidos políticos na reforma da Previdência? Nenhum. No momento atual, os protagonistas cruciais do processo político não são os partidos, mas os grupos corporativistas, especialistas em desagregar os interesses em jogo até adequá-los a suas respectivas capacidades de pressão.
É essa a estrutura que nos proporcionará o empuxo decisivo para a superação da armadilha, vale dizer, para o crescimento sustentável e para níveis aceitáveis de bem-estar social?
O problema de fundo, como se vê, não se reduz aos nossos resquícios de juvenil ufanismo, nem ao caráter acrático de nosso povo, nem ao cambaleante latim do presidente da República. Cedo ou tarde teremos de encarar a reforma do sistema político e oxalá não o façamos pelos estéreis sendeiros que trilhamos desde meados dos anos 80, e sim com uma participação mais efetiva do setor privado.
* Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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