terça-feira, 23 de julho de 2019

Joel Pinheiro da Fonseca*: O que é (e o que não é) liberalismo

- Folha de S. Paulo

Não há nada de liberal numa turba enraivecida calando vozes dissonantes

Ciente da pobreza de qualquer definição, eu diria que o liberalismo é a defesa da liberdade individual como fator essencial da boa sociedade. Uma boa sociedade é aquela na qual as pessoas podem, tanto quanto possível, viver de acordo com seus diferentes valores e interagir pacificamente com os demais.

Os indivíduos vêm antes da consideração abstrata da coletividade, ou de alguma concepção da sociedade como um todo orgânico, que não raro acaba sendo identificado com o Poder Executivo.

Além de um componente moral, essa defesa parte também do entendimento de que a economia de mercado —aquela baseada na propriedade privada, liberdade de preços e de iniciativa— é a engrenagem básica do progresso.

O mercado está longe de ser perfeito. Tem falhas, pode levar à concentração exagerada de renda e riqueza, não atende adequadamente aos mais pobres, não compreende tudo que importa na vida. Essas considerações justificam o papel ativo do Estado para além de mero garantidor da propriedade. Mas o fato é que economias que tentaram prescindir do mercado naufragaram e seguem naufragando.

Dito isso, a liberdade individual vai além da liberdade econômica. Ela depende também, por exemplo, de regras e instituições que impeçam a concentração extrema de poder. Isso se dá tanto pela divisão dos Poderes do Estado quanto pela existência de entidades da sociedade civil capazes de fazer um contraponto ao discurso dos mais poderosos. Nada é mais perigoso ao poder constituído do que mentes e vozes livres.

Ainda que tenhamos, hoje, no Ministério da Economia e no Congresso, algumas pautas de liberdade econômica (reforma da Previdência, reforma tributária, MP da Liberdade Econômica), no campo político a perspectiva é mais sombria: assistimos ao ataque incessante a toda e qualquer instituição ou pessoa não alinhada a um projeto hegemônico de poder. Grande parte desses ataques parte, se não do próprio governo, de uma militância radical aliada a ele (e outra parte da militância radical petista).

A propensão a acreditar em teorias da conspiração (“a facada não ocorreu”, “Jean Wyllys mandou matar Bolsonaro”, a escolha é sua) dão um indício do quão forte anda o pensamento autoritário. Isso porque toda teoria conspiratória parte da premissa implícita de que as instituições basilares da informação na sociedade —imprensa, universidades, ciência— mentem e nos enganam sistematicamente. A certeza indignada com que tantos condenam a atividade política e o respeito ao processo legal —Congresso e STF— caminha na mesma direção.

Assim, discordo de Helio Beltrão em sua coluna de 17 de julho quando diz que o Brasil vive uma “primavera liberal”. A liberdade no Brasil está sob ataque, e muitos dos que se proclamam liberais (não é o caso do Helio) já aderiram de corpo e alma a um projeto de destruição da liberdade de pensar, discutir e viver e de concentração do poder nas mãos dos mais poderosos; esses, sim, contarão com liberdade total.

Não há nada de liberal numa turba enraivecida calando vozes dissonantes pelo grito e pela ameaça. Congresso, Judiciário, imprensa, universidades, ciência; todos estão sob ataque das massas militantes e do discurso oficial. O objetivo é claro: submeter o Brasil a um projeto de poder total em benefício de poucos, coisa que na filosofia política clássica recebia o nome de “tirania”. Foi justamente no combate a ela que o liberalismo nasceu. Privatizar estatais e reduzir alvarás não vale esse preço.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.

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