Apesar de equívocos e risco de excessos, inquérito das fake news deve prosseguir
Se há um ponto em que democracias caminham sobre o fio da navalha, é a regulação da liberdade de expressão. Autorizar qualquer discurso em qualquer situação implica ofender outros direitos fundamentais, como aqueles à segurança, à propriedade, à privacidade, à autoimagem e outros.
Ademais, o advento da internet e das redes sociais ampliou enormemente o potencial de estrago que palavras tóxicas podem causar.
Blindar outros direitos contra discursos que os coloquem em risco tampouco é solução. A liberdade de expressão não apenas está no DNA das democracias liberais como tem valor instrumental.
Pelo menos no Ocidente, os grandes avanços científicos e institucionais obtidos nos últimos séculos estão intimamente associados à livre circulação de ideias, especialmente aquelas que, em algum ponto da história, pareceram blasfemas e mesmo perigosas.
É nesse contexto que se faz necessário entender a discussão em torno das fake news, que se materializa em frentes tão diversas quanto o inquérito que o Supremo Tribunal Federal move para investigar aliados do presidente Jair Bolsonaro, projetos de lei para regular as redes e até em iniciativas de grandes empresas da internet.
Esta Folha, até por ser um órgão de imprensa, defende noção bastante robusta de liberdade de expressão, muito mais próxima do paradigma americano, que se sustenta em autores como John Milton (“Aeropagitica”) e John Stuart Mill (“On Liberty”), que do europeu. E, de fato, as duas tradições, tanto no arcabouço teórico como nas decisões, são muito diferentes.
Na Europa, vários países, embora inequivocamente democráticos, criminalizam o discurso de ódio, a incitação a delitos e mesmo a publicação de informações técnicas que possam ser usadas por terroristas. Ali, alguém pode ser preso até por negar certos fatos históricos, como o Holocausto.
Já os EUA são provavelmente o país que leva mais a sério a liberdade de expressão, permitindo que qualquer grupo exponha qualquer ideia e mobilize seus simpatizantes para defendê-la. É lícito empunhar suásticas, queimar a bandeira nacional e dizer quase tudo, desde que não se coloque em risco iminente a integridade física ou o patrimônio de outras pessoas.
O Brasil fica no meio do caminho. A Constituição traz dispositivos fortes de proteção à liberdade de expressão, mas a legislação infraconstitucional é generosa em proibições. Elas normalmente vêm na forma de veto ao incitamento ou à apologia de crime e de combate ao preconceito e ao racismo.
Embora o STF costume promover a liberdade de imprensa e de expressão com muito mais frequência do que cortes inferiores, não chega a ser muito consistente nessa matéria. Para citar um único exemplo, o ministro Alexandre de Moraes chegou recentemente a censurar duas publicações no âmbito do inquérito das fake news, decisão felizmente revista.
O corolário dessa posição é que, por mais desagradável, cumpre defender o direito de manifestação de bolsonaristas que pedem o AI-5 ou o fechamento do Congresso e do STF. Como disse Mill, é preciso que as más ideias circulem para que as boas possam triunfar.
E o que dizer de autoridades que participam dessas manifestações? Elas são, como qualquer cidadão, livres para dizer o que pensam. No caso de congressistas, a proteção constitucional é ainda mais forte do que a destinada aos demais cidadãos. Mas palavras e atitudes têm consequências políticas.
Se um parlamentar se meter em manifestações contra a democracia, seus pares podem —e deveriam— entender que ele violou o juramento de respeitar a Constituição e cassar seu mandato. Algo parecido vale para integrantes do Executivo, sujeitos à lei que tipifica os crimes de responsabilidade.
A liberdade de expressão, mesmo em sua forma robusta, não significa cheque em branco. Há circunstâncias em que discursos perfeitamente toleráveis em outras situações se tornam delito. Cabe a analogia com o espectador que grita “fogo” numa sessão de cinema sabendo tratar-se de uma mentira. A liberdade dele de expressar-se não se sobrepõe ao direito de terceiros de não correrem risco de vida.
Indivíduos e grupos que fazem uso de palavras exaltadas e notícias falsas podem legitimamente ser investigados para verificar se não incorrem em crimes como calúnia, ameaça, infrações eleitorais e até mesmo formação de organização criminosa com vistas a promover mudança de regime.
Nesse contexto, o famigerado inquérito das fake news encontra chance de redenção. O procedimento, embora dentro da lei (o STF, afinal, define o que é ou não legal), nasceu equivocado. Nunca convém que um mesmo órgão investigue, acuse e julgue. Ainda assim, esta Folha sustenta que o inquérito precisa prosseguir.
Parte das teratogenias iniciais foi resolvida depois que a Procuradoria-Geral da República passou a atuar como acusador no inquérito; falta ainda o endosso do plenário. Ele pode livrar-se de outros inconvenientes se investigar apenas crimes conexos à propagação de notícias fraudulentas, sem tentar coibir a circulação de ideias.
Algo parecido pode ser dito de dois projetos que visam combater fake news a serem votados em breve. Ainda que bem intencionados, podem resultar em censura inaceitável. Como se sabe desde os filósofos iluministas, não se pode regular a priori os conteúdos de mensagens, como fazem as propostas.
Seria mais sensato deixar a cargo das empresas responsáveis apenas marcar como duvidosas as postagens que tenham sido impulsionadas por robôs ou tragam outras marcas da indústria de fake news.
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