Forças políticas que têm suas diferenças, mas compartilham a defesa das liberdades, devem se reaproximar
Nestes 32 anos de vigência da Constituição de 1988 e nos 35 da saída dos militares do Planalto, não houve momentos em que a estabilidade democrática parecesse estar por um fio. A morte de Tancredo antes da posse foi uma tragédia mitigada aos poucos, à medida que o vice, José Sarney, com a habilidade dos velhos políticos conservadores, foi conduzindo o país até a primeira eleição direta pós-ditadura para presidente, em 1989. Os acidentes no percurso da renascida democracia continuaram. Fernando Collor de Mello sucumbiu ao impeachment, em uma crise acompanhada com adequada distância pelos militares. Nem a perspectiva da subida do PT pela rampa do Planalto causou temores. Transcorreram sem sustos 13 anos com a esquerda no Executivo, vencendo-se ainda mais um impeachment, de Dilma Rousseff.
Mas Jair Bolsonaro e o que pensa, quem o cerca e a conjuntura histórica em que país e mundo se encontram passaram a ser a maior ameaça à democracia brasileira neste período de uma geração. Ter a extrema direita no Planalto, na democracia, é uma experiência nova que gera enormes pressões sobre todos os poderes republicanos. Seria o mesmo se fosse a extrema esquerda. Num mundo digitalizado, os ataques a pessoas e a instituições se multiplicam, há muito ruído, agitação, e o que cabe fazer é aplicar a Constituição sem recuos.
O Congresso, mesmo com a limitação das sessões remotas, cumpre sua pauta, e o Judiciário trabalha. Mas a grave crise política exige mais. Bolsonaro, quem diria, usa o método chavista de cooptar militares — alguns da ativa —, para comprometê-los com seu projeto de poder. Finja-se de desentendido quem quiser, mas a estratégia é clara. O uso desta fórmula da experiência bolivariana acrescenta mais tensão ao momento.
A sociedade precisa encontrar a saída de uma situação em que crises provocadas pelo presidente se sucedem e são amplificadas por manifestações, concentradas em Brasília nas últimas semanas, nada expressivas, mas causadoras de intranquilidades, pois são potencializadas por milícias digitais. Tudo transcorre numa séria crise humanitária, social e de saúde pública, em que o número de mortes já se aproxima dos 30 mil, e dentro de uma hecatombe econômica. São ingredientes que favorecem a quem deseja criar o caos para dele se aproveitar.
Durante a semana, ministros do Supremo e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fizeram o que se espera deles. Defenderam as instituições, frisaram o papel vital da democracia, enalteceram a necessidade do diálogo. Mas falta para todas essas acertadas intenções uma via política, que só será construída se os democratas dos diversos matizes se entenderem. Forças políticas que têm diferenças no campo da economia, na área social e outras, mas compartilham zonas de intercessão na defesa das liberdades, têm de se reaproximar.
Esta via política não deve excluir Bolsonaro, que, por sua vez, precisa fazer um gesto pelo entendimento, a melhor alternativa também para ele e seu governo. Com a pacificação, o presidente abrirá espaços de negociação no Congresso, para além do centrão, a fim de executar sua agenda, paralisada, como tudo, devido à crise política. E continuará assim com o fim da epidemia, se este momento não for superado.
O Brasil republicano já venceu fases difíceis, e conseguiu superá-las com a ajuda de alianças entre segmentos políticos que aceitaram deixar de lado diferenças e se unir em torno de interesses compartilhados contra o inimigo comum que ameaçava a todos com a supressão da democracia. Foi assim na resistência ao Estado Novo getulista (1937-45), na ditadura militar (1964-1985/88), e em ambas as transições para a democracia.
Fechada a saída inviável da luta armada, após a decretação do AI-5, e deixada para trás a fase do “milagre econômico”, esgotado na insolvência do modelo, a memória ainda está viva de como liberais, a chamada esquerda democrática e mesmo frações mais à esquerda se entenderam sobre o melhor caminho para a abertura democrática, que não passava pela violência. E numa negociação bem-sucedida entre experientes políticos de direita e de esquerda, incluindo egressos do velho regime, teceu-se um entendimento sobre a abertura com militares geiselistas que venceram o confronto com falanges de extrema direita nos porões da ditadura. São os herdeiros ideológicos daqueles comandos radicais criados nos subterrâneos do regime militar que chegaram ao poder com Bolsonaro. Importa que o país tem de contornar a atual crise da melhor maneira, dentro da lei e pelo diálogo.
É preciso reaprender com a História e voltar a costurar o entendimento entre forças democráticas — mesmo com nuances —, como na década de 70 e início dos anos 1980, desta vez para proteger a Constituição de 1988, que tem garantido anos de estabilidade, sem a qual o Brasil se tornará um pária no mundo. As pressões bolsonaristas contra o Supremo são um ataque à Carta. Mas o país tem a vantagem de contar com instituições edificadas. Não se trata mais de enfrentar a ditadura de Getúlio nem a dos generais. Trata-se de sustentar a democracia, na qual há espaço para todos.
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