Com
74 anos e sobrepeso, Trump foi traído pelo vírus que há sete meses teima em
negar
Deve
ter sido difícil para a Casa Branca, à 1h11 da madrugada da sexta, 2 de
outubro, divulgar o que sobrava da agenda de Donald Trump para o resto do dia.
Reformatada às pressas pela notícia-bomba de que o presidente testara positivo
para o coronavírus, a única atividade mantida foi o seu telefonema de apoio a
idosos vulneráveis ao coronavírus. Ironia crudelíssima. Trump poderia ter dado
o telefonema a si mesmo.
Com
74 anos de idade e sobrepeso (110 kg), colesterol alto, adepto da
hidroxicloroquina, uma internação hospitalar de 2019 jamais explicada e
ostentação de relatórios médicos que sempre davam a impressão de ter sido
escritos pelo próprio paciente, Trump acabou traído pelo vírus que há sete
meses teima em negar. Fosse ele apenas uma fraude de bilionário-ostentação, o
problema seria pessoal. Dado o cargo que ocupa, o real estado de saúde do 45º
presidente americano é de interesse nacional máximo e consequência global
instantânea. Sobretudo quando são dois os vírus em colisão na Casa Branca: o
corona e a desinformação sistemática usada pelo governante. Ambos podem se
revelar mortais — o primeiro, para a vida humana; o segundo, para a vida
democrática.
O
resultado positivo do teste de Trump demonstra de forma inequívoca sua
incapacidade de proteger a nação que o elegeu — a curva de 208 mil mortos e 7,2
milhões de infectados continua subindo — e de proteger-se de si mesmo.
Nos míseros 30 dias que faltam até a eleição de 3 de novembro — ominoso teste para o atual curso democrático dos EUA —, incertezas, medo e déficit de confiança deverão chegar a extremos. Como fica o funcionamento do país com as lideranças dos três poderes e do mais alto escalão do governo tendo tido contato de primeiro grau (sem máscara nem distanciamento) com Trump ou alguém próximo a ele? Diante do que se sabe sobre a chance de falsos negativos em testes sorológicos, todos deveriam permanecer quarentenados por 14 dias. Dificilmente conseguirão.
De uma hora para outra, a pandemia se tornou real. E, de uma hora para outra, a paciente contagem de falsidades e mentiras criadas pelo presidente — já são mais de 20 mil — deixou de ser vista como trabalho inútil do “Washington Post”. Ela explica a abissal falta de confiança na Casa Branca neste momento crítico. De sintomas inicialmente “leves”, pulou-se em algumas poucas horas à hospitalização do presidente. Como dar crédito a qualquer declaração oficial, seja do chefe da nação, de seu vice , chefe de gabinete, médico, porta-voz, estafe? Sem falar que, excetuando um tuíte madrugal do paciente, não só o país, como as lideranças do Congresso permaneceram sem informação oficial por mais de dez horas.
Sequer
se sabe, ao certo, desde quando Trump está efetivamente infectado.
Pela
narrativa inicial, ele se contaminou na quarta-feira, ao longo de vários
périplos eleitorais — aéreos e terrestres — com sua assessora mais próxima,
Hope Hicks, então já sintomática. Trump foi testado na quinta à noite. Contudo
é bastante incomum para um paciente de Covid-19 receber resultado positivo já
no primeiro dia após ser exposto ao vírus. É mais provável que ele tenha
cumprido sua rotina da semana já infectado, mas sem sabê-lo, sempre sem máscara
ou distanciamento. Vale registrar que, momentos antes do início do
debate-embate de terça-feira, um dos médicos pediu aos convidados republicanos
que usassem as máscaras cirúrgicas azuis recebidas. Era uma das regras
obrigatórias do evento. Foi ignorada, inclusive pela primeira-dama, que dois
dias mais tarde também testaria positivo.
Não
foi a única regra atropelada naquele debate ímpar. Trump apostara todas as
fichas no seu estilo betoneira. Imaginou triturar o adversário morno,
deixando-o confuso e expondo suas fraquezas. Apropriou-se quanto pode dos 90
minutos regulamentares, invadiu o território do mediador, confiou no seu
impacto macho tonitruante, insultou, interrompeu. Era mais do que uma questão
de estilo, foi sua estratégia. Apesar da fragilidade de Joe Biden, porém, deu
tudo mais ou menos errado — a começar pelos 3,8 milhões de dólares arrecadados
pela campanha democrata nos primeiros 60 minutos do bate-boca.
Em
2016, durante seu treino com um sparring de
debates antes do primeiro confronto mano a mano com Hillary Clinton, Trump foi
informado do vazamento da explosiva gravação na qual ele se gabava de conseguir
o que quisesse de qualquer mulher — “elas deixam você fazer tudo ...agarrá-las
pela xoxota... tudo”. Eram tempos mais inocentes, ainda se pensava que a
revelação faria naufragar a ambição presidencial daquele meteoro alaranjado. Mas
Trump venceu, cimentando sua certeza de impunidade, imunidade e invencibilidade
eternas.
De
repente, se vê atingido pela impensável possibilidade de derrota eleitoral.
Precisaria reverter a tríade de fracassos nesta reta final da campanha —
pandemia à solta, economia incerta, consequências legais de suas finanças
fraudulentas caso volte a ser cidadão comum. Mas tempo e saúde para incendiar a
eleição estão minguando.
“As regras são para os bobos, e eu sou esperto”, gostava de proclamar o presidente para alegria de seus seguidores. Não neste caso. Em linguagem que lhe cairia bem, “perdeu, mané”. A pandemia foi mais esperta.
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