Um já conhecemos bem e o outro é o que me parece necessário, mas não sei se é possível
Espero que meus caros leitores e leitoras não estranhem o título deste artigo. De fato, hoje meu objetivo é contrastar dois presidentes Bolsonaro, um que já conhecemos bem e outro que me parece necessário, mas não sei se é possível.
É
inegável que o presidente real, esse que conhecemos bem, teve um lance de
inteligência, ou, melhor dizendo, de esperteza, no transcurso de sua já extensa
carreira. Percebeu que sua figura, seu modo de ser e falar, se encaixava bem no
papel que os eleitores estavam procurando: encarnar o antipetismo (vale dizer,
o desastre legado por Lula e Dilma Rousseff), ante o desnorteio, a divisão, a
inapetência ou que nome devam ter os chamados “partidos de centro”, que se
apresentaram na eleição presidencial de 2018 como que incapacitados por um
instinto suicida.
Tirante
o referido lance de esperteza – e aqui me esforçarei para ser objetivo, com
todo o respeito a Sua Excelência –, realmente não há muito a ressaltar na
trajetória de Jair Bolsonaro. Da carreira militar foi levado a se afastar no
posto de capitão. Na Câmara dos Deputados, durante 28 anos, foi uma
corporificação perfeita do parlamentar do “baixo clero”, não aparecendo como
autor de nenhum projeto marcante ou por algum momento de real protagonismo.
Na
Presidência da República, tem-se mantido na contramão dos agentes de saúde que
diariamente põem sua vida em risco, na linha de frente do combate à covid-19.
Recusa-se até mesmo a observar os protocolos, fomentando aglomerações,
recusando-se a usar máscaras e receitando o remédio em que acredita,
peremptoriamente contestado pelos mais destacados cientistas e institutos de
epidemiologia do mundo. Sou forçado a repetir esses lugares-comuns pelo que
eles têm de pitoresco, pois a verdade é que a própria forma de transmissão da
doença ainda não está satisfatoriamente esclarecida.
Um
terceiro traço do Bolsonaro real é sua evidente incompreensão de certas
engrenagens da sociedade e da política brasileiras. Por exemplo: ele prometeu
erradicar a “velha política”, substituindo-a, presumivelmente, por uma nova, da
qual somente participassem homens lúcidos, probos, competentes e devotados ao
bem público. Nutrirá, por acaso, o presidente a crença de que a “velha
política” é um fenômeno recente? De que muitos dos que nela ingressam o fazem
com a evidente intenção de assaltar o erário? De que sem partidos sérios não há
como haver política séria – e, convenhamos, um país ter 30 pequenos partidos e
não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa? Desconhecerá, talvez, que mesmo
com políticos e partidos razoáveis, o Brasil continuará por um bom tempo
encalacrado na velha disjuntiva entre concepções econômicas “nacional-estatistas”
e “neoliberais”, as primeiras sabidamente responsáveis por grandes desastres e
a segunda (presumindo que saibamos o que é) nunca praticada de forma
consistente entre nós?
Um
Jair Bolsonaro “possível” é realmente uma possibilidade ou apenas um sonho de
uma noite de verão? A primeira coisa que esse ser imaginário teria de entender
é que não somos um país navegando em mar sereno, rumo ao desenvolvimento e ao
bem-estar, mas, bem ao contrário, um país que corre sérios riscos de
retrocesso. E que os conflitos que hoje grassam na sociedade, e nos assustam,
poderão piorar muito mais, alastrando-se e tornando-se muito mais violentos, se
não lograrmos aumentar substancialmente o investimento e a taxa de crescimento
da renda anual per capita, com uma melhor distribuição, vigorosamente reforçada
por um sistema de ensino apresentável.
Mas
a tragédia que nos espreita é muito maior do que o que me empenhei em esboçar
no parágrafo anterior. Mais grave é Jair Bolsonaro não ter feito uma leitura
correta do estado de alma dos brasileiros, fazendo pose de violento dia sim e
outro também, quando o que dele se espera é uma postura comedida, um exemplo de
que precisamos dar meia volta e retomar, não direi o espírito de uma sociedade
sem conflitos, mas pelo menos o de um país com instituições civilizadas,
pautadas por boas maneiras. Invocar Deus e a religião é direito de qualquer um,
mas um homem público precisa primeiro perceber que a sociedade brasileira tem
uma ordem normativa muito frágil.
Como
indiquei acima, Jair Bolsonaro convive há cerca de três décadas com a classe
política e a cúpula dos três Poderes. Esse convívio deve ter-lhe ensinado muita
coisa, e o ministro Paulo Guedes deve ter preenchido eventuais lacunas. Ambos
sabem que os altos escalões consomem cifras astronômicas, tornando inviável o
ajuste fiscal e solapando as bases da legitimidade política que precisamos
urgentemente reconstruir. A receita para isso não é ameaçar jornalistas. É
enfrentar de rijo o problema, propondo reformas administrativas e políticas
realistas, que precisam ser trabalhadas com calma e de forma objetiva. É manter
a compostura e a serenidade que se requer de um chefe de Estado, reconduzindo a
sociedade à trilha que ela parece momentaneamente haver perdido.
*Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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