quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Maria Hermínia Tavares* - Na pandemia, obrigados a ser fortes

- Folha de S. Paulo

Experiências de solidariedade deveriam inspirar políticas públicas

Perdendo a enésima oportunidade de ficar calado, Bolsonaro chegou não faz muito a desdenhar dos que ficam em casa para se proteger da pandemia. "É para os fracos", decretou, quando já passavam de 135 mil os mortos pela Covid-19. Na realidade, os "fortes", expostos diariamente ao novo coronavírus, são muitos —e muito diversos em estilo e condições de vida.

A grande maioria é formada por aqueles para os quais o isolamento não é opção, por lhes faltarem renda, moradia adequada, acesso a saneamento e água potável. São os milhões de pobres, predominantemente negros, que vivem nas periferias ou nos centros degradados de nossas cidades.

É difícil saber ao certo como vêm passando e de que modo têm reagido à pandemia. O pouco que se conhece de sua dor e de sua força deve-se à Rede de Pesquisa Solidária, que reúne mais de uma centena de estudiosos de diferentes formações e filiações acadêmicas, engajados em levantar dados que ajudem a melhorar a ação dos governos durante e depois da pandemia.

Um grupo de membros dessa rede, coordenado pela socióloga Graziela Castello, vem coletando periodicamente informações junto a lideranças comunitárias de várias capitais brasileiras sobre os principais problemas enfrentados pelas populações mais vulneráveis.

O que angustia antes de tudo os ativistas das comunidades são as famílias que passam fome, uma ameaça sempre presente. Segue-se a perda do emprego ou do trabalho e da renda. Depois, a dificuldade de acesso a serviços públicos como educação, justiça e atendimento funerário; finalmente, a expansão do contágio e a dificuldade de conseguir a adesão das pessoas às medidas de proteção.

Os mesmos temas aparecem nos relatos de três ativistas participantes do evento "A pandemia nas favelas", organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso e disponível no YouTube. Eles contam como líderes e entidades comunitárias se mobilizaram para suprir carências de toda ordem. Distribuíram cestas básicas, material de higiene, máscaras; organizaram atividades para gerar renda e fizeram podcasts para difundir informações úteis sobre a pandemia; auxiliaram os agentes comunitários de saúde e saíram em busca de espaços para o isolamento dos doentes e proteção dos mais velhos.

Dor, luto e incerteza —mas também solidariedade, força e inovação— aparecem nos depoimentos dos participantes do encontro, assim como naqueles coletados pela Rede Solidária. São experiências que poderiam inspirar parcerias inovadoras e políticas públicas mais adequadas a um país onde o isolamento não é para quem quer, porém para quem pode.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap

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