Disputa indica uma crise
constitucional, já que Donald Trump só aceita um resultado: sua vitória
O que acontece no sistema
político americano pesa de forma desproporcional no resto do mundo.
Especialmente quando o país que serviu de referência – “a cidade de luzes no
topo da colina”, na clássica definição – vai deixando de ser exemplo positivo.
Nota-se na falta de
conteúdo substantivo do debate a presença de uma espécie de doença infecciosa
espalhada de tal maneira a ponto de grandes temas de formulação de políticas
domésticas e internacionais mal receberem menções – uma das poucas foi sobre
desmatamento da Amazônia, provavelmente pela
sensibilidade que Joe Biden julga detectar no eleitorado democrata. É como se
fosse uma “amnésia” em relação ao resto do planeta, assinalam comentaristas
americanos.
Um deles é Adam Garfinkle, fundador e
editor da imperdível publicação “The American Interest” (que tem no seu quadro
de colaboradores nomes como Francis Fukuyama, Walter Russel Mead, Robert D.
Kaplan, Niall Ferguson). Ele vai ao ponto de dizer que a sociedade e política
americanas vivem um “estado geral de loucura” do qual Donald Trump não foi o
iniciador. Mas que ajudou a acelerar, passando a representar a “quintessencia”
de um tipo de desorientação geral típico de quem se perde numa sala de
espelhos.
Para Garfinkle, constatar
que Trump está ativamente empenhado em solapar as instituições democráticas
americanas (seu destaque favorito é a politização do Departamento de Justiça)
não significa dizer que o outro lado é “bom”. “Os democratas podem parecer
relativamente menos perigosos para normas e princípios americanos, mas suas
divisões internas e seus julgamentos equivocados não os tornam admiráveis. Por
serem meramente incompetentes em vez de imorais não os torna bons na linha do
tradicional provérbio de que dois erros não compõe um acerto”, escreveu.
Já é lugar-comum afirmar
que no ambiente político americano (no brasileiro também, diga-se de passagem)
as pessoas não conseguem concordar em sequer quais são os fatos. Não é de hoje
que a política se tornou um espetáculo de imagens rápidas, mais compatíveis a
eventos de esportes brutais, nos quais o entretenimento tem total precedência.
Quando tudo vai se limitando a 140 toques, e ao “joinha” no pé da postagem,
esse tipo de debate acaba sendo o espelho da perda do hábito da leitura e,
sobretudo, da reflexão.
É o tipo da situação na
qual tanto democratas quanto republicanos colocam o “sound bite” (a “sonora”,
na gíria televisiva brasileira) adiante de qualquer substância, as teorias
conspiratórias na frente de qualquer abordagem racional ou de substância. De
novo, não é Trump o “inventor” desse tipo de fenômeno – muito conhecido também
na nossa política. Mas é ele quem se esmera em tirar todo partido possível do
desrespeito às regras não escritas de convivência dentro da civilidade e do
respeito à opinião alheia e, sem dúvida, da mentira descarada.
A julgar pelo que ele
mesmo disse no debate, Trump terá de ser forçado para fora da Casa Branca, mas
mesmo uma clara e inequívoca derrota dele não fará o relógio voltar para trás.
O que pareceu perdido no espetáculo do debate de terça à noite foi o que tanto
fascinou sobretudo comentaristas europeus desde o século 18: o espírito de comunidade,
de virtudes civis e de dedicação ao bem comum da tal “cidade das luzes no alto
da colina”.
*Jornalista e apresentador do jornal da CNN
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