Janaína Figueiredo | O Globo
RIO — Filho de republicanos espanhóis, com uma avó comunista e um avô anticlerical, Joaquín Salvador Lavado, conhecido por todos como Quino, cresceu numa família de imigrantes na Argentina profundamente politizada, que marcou seu pensamento e sua obra. Entre os dez e os 18 anos, esteve de luto pelas sucessivas mortes de seu avô, sua mãe e seu pai, o que o obrigou a usar uma faixa preta no braço que lhe provocava a “terrível sensação”, como ele mesmo descreveu, de sentir-se um nazista. Desde criança, rechaçou qualquer tipo de opressão social e essa aversão o acompanhou pelo resto da vida. Através do desenho, Quino, falecido nesta quarta-feira, aos 88 anos, vítima de complicações de um AVC, expressou suas angústias, frustrações, temores e visões de mundo.
Órfão desde muito cedo, Quino morou vários anos com seu tio, o desenhista e publicitário Joaquín Tejón, de quem aprendeu a paixão por um trabalho que desempenhou até a cegueira se tornar um pesadelo em sua vida, antes de completar 80 anos. Nascido em 17 de julho de 1932 na província de Mendoza, Quino começou a desenhar aos três anos, como muitas crianças, e decidiu que esse seria seu ofício aos 14. Chegou a se inscrever na Escola de Belas Artes de Mendoza, mas abandonou a carreira acadêmica e aos 18 anos instalou-se na capital do país, onde começou a trabalhar em revistas.
Em entrevistas, Quino reconheceu ser um desenhista obsessivo e revelou que o desenho era central em sua vida e o fez até mesmo adiar o descobrimento do sexo. Os primeiros erros cometidos o afligiram profundamente. Em uma das primeiras páginas de humor que conseguiu publicar desenhou um toureiro que tinha matado um touro e estava vestindo sua tradicional capa. Um leitor enviou uma carta tratando o desenhista de burro e explicando que, antes de matar o touro, todos os toureiros jogam a capa a alguém a quem dedicam a vitória. Numa longa entrevista ao jornal “Página 12” quando completou 80 anos, Quino reconheceu que “aquilo me marcou. Por isso depois me transformei num obsessivo da pesquisa e documentação”.
‘Impacto no poder’
O desenhista passou por várias redações e conseguiu publicar sua primeira página de humor gráfico na revista “Esto Es”. Era uma época em que as revistas faziam grande sucesso na Argentina e Quino passou por várias até que em 1964 a famosa “Primera Plana” apresentou quem seria sua personagem mais famosa: a curiosa, intempestiva, sagaz e provocadora Mafalda. Antes dela, o desenhista lançou o livro “Mundo Quino”, uma recopilação de quadrinhos humorísticos.
Pode-se dizer que Mafalda nasceu por acaso. Uma marca nacional de eletrodomésticos pediu a Quino que criasse uma típica família de classe média para uma campanha publicitária. A campanha nunca saiu do papel, mas Mafalda foi um sucesso imediato no mundo das histórias em quadrinhos. A partir de 1965, suas tirinhas passaram a ser publicadas pelo jornal “El Mundo”, e posteriormente pela revista “Siete Dias Ilustrados”.
— Quino foi o melhor herdeiro da escola francesa de desenhistas dos anos 50. Ele sempre disse que se sentia preso em Mafalda e, de fato, como humorista é muito mais do que Mafalda — disse Martín Pérez, editor do “Página 12” e do livro “Distinta”, uma compilação de histórias em quadrinhos argentinas.
Em algumas entrevistas, Quino diz ter encontrado seu estilo após o nascimento de Mafalda, personagem que, num começo, calcava em janelas de vidro porque temia não ser fiel ao desenho original.
— Ele chegou a dizer que Mafalda quase o matou como desenhista. Seu melhor momento como humorista internacional, um dos melhores do século XX, foi depois de abandonar Mafalda, em 73 — enfatizou Pérez.
A menina sabida, até hoje a história em quadrinhos latino-americana mais vendida no mundo, permitiu a Quino ser conhecido internacionalmente, o que facilitou sua vida no exílio. Em março de 1976, poucos dias antes do golpe de Estado do dia 24, o desenhista rumou para a Europa com sua mulher, Alicia Colombo, já falecida. Depois de ter sofrido a censura de governos militares anteriores, Quino decidiu deixar a Argentina às vésperas de uma das ditaduras mais violentas de sua História e demorou muitos anos em voltar a ter uma casa em seu país. Para quem se definia como antiperonista, anticlerical e anti qualquer tipo de opressão social, o ambiente em Buenos Aires se tornara irrespirável.
— Quino escapou da violência política. Foi muito crítico e seu trabalho teve grande impacto no poder — comentou o editor do “Página 12”.
Na entrevista ao jornal argentino, o desenhista lembra que quando começou a trabalhar não se podia falar sobre religião, política ou sexo. O problema com a censura, afirmou Quino, “era que não estava claro o que se podia e o que não se podia fazer. No Brasil, pelo menos existiam censores... Ziraldo me mostrou uma vez como lhe devolviam as charges que mandava com uma cruz vermelha proibindo. Mas aqui ninguém dizia nada. Por isso havia autocensura, porque se não vão publicar, para que vamos desenhar”.
Alguns episódios o assustaram. Pouco depois de sua partida para a Itália, foram assassinados cinco padres Palotinos na Argentina. Anos depois, jornais locais publicaram uma foto na qual se vê, em cima dos corpos das vítimas do massacre, o famoso pôster da Mafalda no qual ela aponta para um policial e diz “este es el palito de abollar ideologias” (este é o pauzinho de amassar ideologias). “Quando vi pela primeira vez essas fotos foi algo que me impressionou muito”, disse Quino já na época da redemocratização do país. Lembrando uma das canções da compositora argentina Maria Elena Walsh, o desenhista costumava dizer sobre seu país que “me dói se fico, mas morro se vou”.
Com o passar dos anos e das décadas, Mafalda se tornou uma celebridade global e Quino passou a dividir seu tempo entre Madri e Buenos Aires, sempre fugindo do frio invernal. Apesar de ter reconhecido o peso que representou para ele a existência de sua mais famosa criação, nunca deixou de ir a exposições, inaugurações de esculturas ou responder perguntas sobre o que pensaria Mafalda sobre isso ou aquilo. Lembrava, sempre, que sua personagem surgiu na época do Maio de 68, a ebulição de guerrilhas na América Latina e no papado de João XXIII. Anos de grandes acontecimentos e enorme expectativa.
Como ela, Quino, assegurou o desenhista Miguel Rep, que o considerava seu segundo pai, sentia em suas entranhas a “indignação com as injustiças do mundo, o abuso de poder, o antifascismo visceral. Poderíamos dizer que ele viveu amargurado como Mafalda. Quino foi salvo pela arte. Foi uma maravilha, um anjo nessa vida cheia de seres pesados”.
Ambos conversavam bastante e o último telefonema, já em plena pandemia, foi em julho passado, quando o desenhista completou 88 anos.
— Perguntei ‘e aí, Quino?’ e ele respondeu ‘está nublado’. Disse que assim que liberassem os voos eu iria pra lá, tomaríamos juntos um malbec e lhe daria um beijo na boca. Ele riu, já estava cego. A última coisa que ouvi foi ‘tchau Miguelito’, naquele tom cuyano (Mendoza está ca região de Cuyo), com restos de andaluz (os pais de Quino eram espanhóis), que jamais esquecerei — contou Rep, de 59 anos.
A amizade entre ambos vem de longa data e para um desenhista como Rep, que começou a despontar na década de 80, em momentos em que a Argentina iniciava seu período de volta à democracia, foi um enorme privilégio. Profundamente agradecido, Rep desenhou e prometeu continuar desenhando Quino. Lembra do mestre como um “republicano espanhol, um homem da esquerda chique”.
— Ele aceitava o termo mestre como se fosse um renascentista caminhando pela Florença de Médici (dinastia política italiana), timidamente, mas sabendo que sua obra entraria no mundo dos clássicos. Quino foi a pessoa mais veraz que conheci. Dizia o que pensava, como uma criança, mas com economia e ubiquidade — contou o desenhista.
A lista de prêmios é grande e inclui o Príncipe de Astúrias, na Espanha, e a Ordem Pablo Neruda, que recebeu em 2015 da ex-presidente chilena Michele Bachelet (2006-2010 e 2014-2018), em Santiago. Na época já viajava acompanhado, em geral, por sua sobrinha, Julieta Colombo, e muitas vezes utilizava uma cadeira de rodas.
Antes de fazer 80 anos, Quino reconheceu ter ficado de péssimo humor. Depois, confessou, o mal estar passou. A perda da visão o obrigou a encerrar a carreira de desenhista há mais de dez anos, mas os que conviveram com ele asseguram que jamais perdeu a doçura. Nem a capacidade de analisar as penúrias de um mundo que, já na década de 60, Mafalda definia como doente — e tentava curar com um esparadrapo.
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