domingo, 16 de janeiro de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto*: A encruzilhada de Lula

Os resultados da primeira grande pesquisa do ano de 2022 envolvendo intenções de voto para a eleição presidencial (da Quaest, consultoria e pesquisa) registraram uma estabilidade do quadro virtual da competição que não dá lugar a comentários novos. Continua a valer a distinção feita, nesta coluna, na semana passada, entre conjuntura e cenários. Mas é fato que, dentre os cenários possíveis, o correr do tempo, até aqui, sugere como mais provável o mesmo que, em linhas gerais, há meses está posto por pesquisas dessa mesma fonte e outros institutos de análoga credibilidade.  O céu aparentemente sem nuvens que sorri ao ex-presidente Lula instiga o analista a desviar o olhar prospectivo de conjecturas sobre possíveis cenários alternativos de competição e a fixá-lo nos movimentos do ex-presidente e do seu entorno, tentando analisar as tendências da sua campanha eleitoral e de um eventual governo seu. Se essa é, até aqui, a hipótese mais provável, é interesse público especular sobre sentidos que ela pode assumir, a depender de movimentos que fazem e dos que podem fazer o próprio Lula e outros atores.

De início é preciso registrar e honrar a presença, também nesse assunto, dela, da incerteza - a onipresente companhia da qual nenhum assunto político se separa. A pergunta talvez mais relevante no momento seja se Lula está indo/irá ao centro em busca de uma eleição numericamente consagradora e indiscutível ou se buscará outro tipo de consagração, por vencer um terceiro turno da eleição de 2018. Nesse último caso, um acerto de contas em torno do passado recente, seu e do seu partido; no primeiro caso, a busca de liderar diferentes forças civis e políticas do país numa quadra de reconstrução nacional.

Personagem muito apetente, do ponto de vista político, Lula parece perseguir ambas as consagrações, para ser ao mesmo tempo amado como pacificador da pátria e temido como vencedor de uma revanche. Ao seu redor há coadjuvantes adequados e figurantes aptos para cada um dos dois scripts, embora os da revanche façam, por hábito e vocação, bem mais barulho. A trama ambígua, aos poucos, começou a chegar a públicos mais amplos, nos estertores do ano passado e nesses primeiros dias de 2022.  

O barulho da esquerda negativa às vezes confunde e leva gente de opinião ponderada e progressista a improvisar juízos reativos rápidos que terminam se somando à histeria que acomete a direita negativa. É precisamente o caso da discussão instalada a respeito de uma eventual revisão, ou revogação, da reforma trabalhista de 2017. É possível, em meio à cacofonia, ter juízo racional sobre o tema. Como teve o ex-presidente Michel Temer, personagem implicadíssimo no enredo, em recente entrevista concedida à jornalista Daniela Lima e seus colegas Renata Agostini e Leandro Rezende. Pelo conteúdo esclarecedor e politicamente lúcido da fala, vale, quem não assistiu, dar uma busca nos arquivos de vídeo da CNN. Ajudará a distinguir, no debate atual, visões de quem quer debate público das de quem quer revanche.

De início, é preciso dizer (como frisou também Temer) que se trata de muito bem-vinda pauta.  Será uma sorte se esse tipo de tema de interesse público substituir, na campanha eleitoral, conflitos pessoais entre candidatos postados em um ringue virtual, “batendo” - como se costuma dizer na gíria vulgarizada do marketing político - uns nos outros com acusações superficiais, por vezes levianas, trocando insultos em torno de assuntos pedestres, desprovidos de utilidade pública e tratados amiúde em termos chulos. Em vez de recriminação, o ex-presidente merece pontuação positiva, por ter sugerido que os brasileiros acompanhem de perto a revisão, ora em curso na Espanha, da reforma trabalhista ali feita, por decreto, em 2012 e que agora é objeto de ampla discussão, podendo dar lugar a uma lei do Parlamento. Além de sugerir que esse acompanhamento seja feito pela sociedade, o próprio Lula acompanha o processo. Ter ido à Espanha e levado quadros consigo a reuniões e um seminário com condutores dessa política no governo espanhol é também sinalização positiva, de um pré-candidato que se prepara para governar, se eleito, com antenas ligadas no mundo sem se limitar a lógicas do contencioso doméstico.

Entretanto, é preciso não perder de vista a trajetória diversa que o tema cumpriu, no caso brasileiro. A começar pelo fato de que, à diferença da Espanha, tivemos aqui, como marco legal da reforma trabalhista, não um decreto do Executivo, mas uma lei aprovada no Congresso depois de ampla exposição pública do assunto, seja na fase preliminar de gestação de um projeto de Lei, pelo Executivo, seja depois, durante os meses em que tramitou no Legislativo. Na primeira fase, em 2016, houve audiência a diversos atores interessados, incluídas as representações de patrões e empregados, um entendimento e um projeto de lei bastante moderado, se comparado à lei que foi, afinal, aprovada pelo Congresso. E essa discrepância entre projeto e lei deve-se, em boa parte, ao tipo de enfrentamento que se deu nessa segunda fase. O relator – o atual ministro Rogério Marinho – agiu determinado a “passar a boiada”, em articulação com toda a sorte de pressões de grupos e lideranças empresariais e respaldado por uma ampla base de parlamentares associada a esses grupos de pressão ou mesmo a empresários individuais, inclusive parte deles próprios. Essa fronda promoveu uma operação plástica de grande extensão no projeto do Executivo, cuja expressão foi um substitutivo do relator que ainda ganhou mais vitamina disruptiva com centenas de emendas apresentadas na Comissão Especial e em plenário, grande parte delas animadamente acolhidas pelo relator e chanceladas pela maioria congressual formada em torno da ideia de uma reforma radical, que acabou se impondo sobre a moderação inicial.

Quem quiser conferir pode ir ao portal da Câmara dos Deputados e encontrará a memória do processo. E constatará não só essa dinâmica avassaladora da fronda que tentei resumir como poderá viajar, se quiser, no outro lado da lua, isto é, na racionalidade política (ou subpolítica) que presidiu a conduta da esquerda no mesmo processo. Lembremo-nos de que eram tempos de denunciar “o golpe” e gritar “Fora Temer”. Nesse pique, o tique era rejeitar tudo que viesse do governo “ilegítimo”. Teto de gastos, reforma trabalhista e reforma da previdência eram encarados como itens de um pacote golpista, não importando, portanto, o mérito particular de cada reforma, o que cada uma dessas matérias trouxesse de atendimento ou recusa dos diversos interesses sociais envolvidos, muito menos as soluções objetivas resultantes que pudessem surgir para esses embates legítimos, em termos de governabilidade do país, superação da crise econômica e combate ao desemprego galopante, requerimentos inadiáveis face a situações concretas que se apresentavam ao final da guerra do impeachment. Tudo isso perdia sentido, aos olhos da esquerda politicamente destituída e conflagrada, diante da necessidade de protestar e, quiçá, reverter a situação política. Os olhos e cérebros mais moderados dessa oposição aguerrida miravam as eleições de 2018. Os menos comprometidos com rituais democráticos usavam o impeachment como “prova” de que a democracia era finda, o que requeria outros métodos de luta. Assim, no Congresso, não houve olhos e cérebros relevantes para procurar, na matéria da reforma trabalhista, o que, afinal, era interesse de trabalhadores. Por certa lógica se esperaria que, vendo-se em clara minoria, a esquerda procurasse reduzir danos. Mas para isso era preciso ancorar-se no projeto moderado do Executivo, que o relator radicalizava. Como a polarização política não permitia tal cogitação, viu-se a base governista inteiramente liberada para aderir à passagem da boiada. E a esquerda restrita ao esperneio cheio de adjetivos, que se encontra na consulta a discursos nos arquivos.

Falta de firmeza? Hipocrisia? Tudo isso pode ter ocorrido e ser usado como argumento contra a base do governo Temer para que a esquerda justifique sua própria fuga à responsabilidade política, naquele momento. Fuga ainda mais dramática se atentarmos à conivência de lideranças sindicais de esquerda para com essa conduta absenteísta da base parlamentar. Agiram como correias de transmissão de uma causa partidária, defenderam por isso o status quo trabalhista, reagindo à própria ideia de reforma. Erro político também porque se aprovou uma lei que foi além e em muitos pontos ficou aquém do objetivo declarado da modernização, chancelando e estimulando precarizações talvez evitáveis por normas fixadas por pacto para proteção de trabalhadores tradicionais. Pactos que poderiam ser conseguidos, ou não, mas que sequer foram tentados por quem tinha mandato, parlamentar ou sindical, para fazê-lo. 

É preciso compreender então que Lula, caso faça, se eleito, uma proposta de revisão dessa lei, poderá com isso fazer algo muito mais construtivo do que revogar a lei de 2017. Será uma oportunidade de, pelo debate público e pela coordenação do Estado, corrigir os excessos que a tornaram, em parte, instrumento unilateral das empresas em desfavor dos seus trabalhadores. Mas também atualizar e aprofundar o que ela trouxe de positivo, quando encarou, por exemplo, o inadiável problema de regrar relações trabalhistas de milhões de terceirizados e temporários. Sua revisão pode permitir, inclusive, responder, de modo prático, aos novos reclamos sociais de milhões de indivíduos concretos, jovens e maduros, ligados ao fenômeno, que parece irreversível, da multiplicação espantosa dos trabalhadores de aplicativos que a pandemia intensificou. Em suma, esse é tema politicamente nobre, pelo enorme interesse público que desperta e pela chance que dá à esquerda de se tornar contemporânea. Não é sensato incluí-lo entre os sinais de recusa de Lula a um diálogo ao centro. Muito pelo contrário.

Mas os sinais de recusa são, por outro lado, também evidentes. O silêncio da liderança de Lula diante de toda sorte de diatribes e impropérios que se tem dito, na sua praia partidária e arredores, para bloquear soluções de compromisso ao centro de um hipotético governo seu é um dado preocupante. Indício de que sua campanha e, pior, de que seu governo poderá reproduzir a lógica pendular que, na experiência dos antigos partidos comunistas, ficou conhecida como política do pântano, praticada, por suas cúpulas, contra as esquerdas e as direitas dos partidos. Esse método político tem aplicação bem mais ampla do que naquelas realidades. Ao sabor das suas táticas, uma cúpula (ou um chefe político) ora afaga aliados, atuais ou futuros e, como astuta raposa, recepciona-os com declarações simpáticas, narrativas concessivas e jantares calorosos, ora estimula os radicais do entorno, soltando seus lobos ou demônios para afugentar visitas como se fossem só elas as raposas. Estaremos, se as urnas conferirem a Lula mais um mandato, imersos nessa trama supostamente maquiaveliana? Digo supostamente para fazer justiça ao gênio republicano do florentino, que não propunha o uso das artes da política em benefício de um varejo pessoal. É na grandeza do Estado e na felicidade do seu povo que o governante sábio, porque também prático, encontra o poder que persegue. No mundo de hoje, em que a razão criou instituições coletivas que limitam de modo perene a vontade política do poderoso, é possível a grandeza de um estado e a felicidade de um povo serem achadas no pântano em que se planta um governante apenas tático? É razoável pensar que nem no tempo de Maquiavel um tal sabido teria bom futuro.

Essa "inteligência" tática de uma esquerda que se achava esperta ajudou uma vez a quase arruinar o país. Achou que podia ganhar eleições com muitos parceiros e depois governar sozinha, sem programa comum pactuado com eles, somente contratando, com recursos públicos, o apoio que se fizesse necessário a cada instante. Essa tentação pode ficar maior se Lula puder vencer a próxima eleição como um caudilho, sem compromissos com ninguém, a não ser com o “povo”. E impressiona a quantidade de pessoas de boa formação, boa história e boa intenção, que incorre no autoengano de supor que na hora certa ele saberá encontrar uma solução “inteligente”. Assim até eleitores à direita ficam menos inquietos com a ideia de dar uma carta branca a Lula para governar como déspota pragmático, pois ele estaria livre, inclusive, para enquadrar seus radicais e governar com a turma mais moderada e o PIB. Vale lembrar: ACM também era, para seus seguidores, um PHD em política, infalível, até que falhou tropeçando na própria soberba e foi varrido do mapa político. Morreu sem trono para legar, ficou a memória. Há raciocínios na praça que têm a mesma índole do raciocínio carlista que sacralizava o chefe.

Iniciativas como a de tematizar a reforma trabalhista na campanha aparecem como chance de o país sair do pântano. Essa é uma inteligência que tem a sabedoria de entender que suas proezas, como todas as proezas humanas, têm prazo de validade. O prazo das proezas do lulismo antigo está próximo de vencer. Sem exagero, está na prorrogação, vivendo, na verdade, do seu passado. Se acreditar que seu barro é distinto do que molda os humanos comuns, o mito da esquerda, com a cumplicidade de sectários e áulicos, pode não ver sua recente prisão como lição realista sobre seus próprios limites. E por essa soberba, não por uma conspiração qualquer, terminar perdendo uma eleição quase ganha. Isso poderá ocorrer se ele deixar cair no chão a bandeira da pacificação nacional, que lhe surge como chance de consagração de sua liderança. Um grupo de jogadores, profissionais como ele, mas antenados para a delicadeza do momento coletivo do país, pode armar um jogo alternativo, com o bagaço dessa bandeira.

*Cientista político e professor da UFBa

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