De início é preciso registrar e honrar a
presença, também nesse assunto, dela, da incerteza - a onipresente companhia da
qual nenhum assunto político se separa. A pergunta talvez mais relevante no
momento seja se Lula está indo/irá ao centro em busca de uma eleição numericamente
consagradora e indiscutível ou se buscará outro tipo de consagração, por vencer
um terceiro turno da eleição de 2018. Nesse último caso, um acerto de contas em
torno do passado recente, seu e do seu partido; no primeiro caso, a busca de liderar diferentes forças
civis e políticas do país numa quadra de reconstrução nacional.
Personagem muito apetente, do ponto de
vista político, Lula parece perseguir ambas as consagrações, para ser ao mesmo
tempo amado como pacificador da pátria e temido como vencedor de uma revanche.
Ao seu redor há coadjuvantes adequados e figurantes aptos para cada um
dos dois scripts, embora os da revanche façam, por hábito e vocação, bem
mais barulho. A trama ambígua, aos poucos, começou a chegar a públicos mais
amplos, nos estertores do ano passado e nesses primeiros dias de 2022.
O barulho da esquerda negativa às vezes confunde e leva gente de opinião ponderada e progressista a improvisar juízos reativos rápidos que terminam se somando à histeria que acomete a direita negativa. É precisamente o caso da discussão instalada a respeito de uma eventual revisão, ou revogação, da reforma trabalhista de 2017. É possível, em meio à cacofonia, ter juízo racional sobre o tema. Como teve o ex-presidente Michel Temer, personagem implicadíssimo no enredo, em recente entrevista concedida à jornalista Daniela Lima e seus colegas Renata Agostini e Leandro Rezende. Pelo conteúdo esclarecedor e politicamente lúcido da fala, vale, quem não assistiu, dar uma busca nos arquivos de vídeo da CNN. Ajudará a distinguir, no debate atual, visões de quem quer debate público das de quem quer revanche.
De início, é preciso dizer (como frisou
também Temer) que se trata de muito bem-vinda pauta. Será uma sorte se esse tipo de tema de
interesse público substituir, na campanha eleitoral, conflitos pessoais entre
candidatos postados em um ringue virtual, “batendo” - como se costuma dizer na
gíria vulgarizada do marketing político - uns nos outros com acusações superficiais,
por vezes levianas, trocando insultos em torno de assuntos pedestres,
desprovidos de utilidade pública e tratados amiúde em termos chulos. Em vez de
recriminação, o ex-presidente merece pontuação positiva, por ter sugerido que
os brasileiros acompanhem de perto a revisão, ora em curso na Espanha, da
reforma trabalhista ali feita, por decreto, em 2012 e que agora é objeto de
ampla discussão, podendo dar lugar a uma lei do Parlamento. Além de sugerir que
esse acompanhamento seja feito pela sociedade, o próprio Lula acompanha o processo.
Ter ido à Espanha e levado quadros consigo a reuniões e um seminário com
condutores dessa política no governo espanhol é também sinalização positiva, de
um pré-candidato que se prepara para governar, se eleito, com antenas ligadas
no mundo sem se limitar a lógicas do contencioso doméstico.
Entretanto, é preciso não perder de vista a
trajetória diversa que o tema cumpriu, no caso brasileiro. A começar pelo fato
de que, à diferença da Espanha, tivemos aqui, como marco legal da reforma
trabalhista, não um decreto do Executivo, mas uma lei aprovada no Congresso
depois de ampla exposição pública do assunto, seja na fase preliminar de
gestação de um projeto de Lei, pelo Executivo, seja depois, durante os meses em
que tramitou no Legislativo. Na primeira fase, em 2016, houve audiência a diversos
atores interessados, incluídas as representações de patrões e empregados, um entendimento
e um projeto de lei bastante moderado, se comparado à lei que foi, afinal,
aprovada pelo Congresso. E essa discrepância entre projeto e lei deve-se, em
boa parte, ao tipo de enfrentamento que se deu nessa segunda fase. O relator –
o atual ministro Rogério Marinho – agiu determinado a “passar a boiada”, em
articulação com toda a sorte de pressões de grupos e lideranças empresariais e
respaldado por uma ampla base de parlamentares associada a esses grupos de
pressão ou mesmo a empresários individuais, inclusive parte deles próprios. Essa
fronda promoveu uma operação plástica de grande extensão no projeto do
Executivo, cuja expressão foi um substitutivo do relator que ainda ganhou mais
vitamina disruptiva com centenas de emendas apresentadas na Comissão Especial e
em plenário, grande parte delas animadamente acolhidas pelo relator e
chanceladas pela maioria congressual formada em torno da ideia de uma reforma
radical, que acabou se impondo sobre a moderação inicial.
Quem quiser conferir pode ir ao portal da
Câmara dos Deputados e encontrará a memória do processo. E constatará não só
essa dinâmica avassaladora da fronda que tentei resumir como poderá viajar, se
quiser, no outro lado da lua, isto é, na racionalidade política (ou subpolítica)
que presidiu a conduta da esquerda no mesmo processo. Lembremo-nos de que eram
tempos de denunciar “o golpe” e gritar “Fora Temer”. Nesse pique, o tique era
rejeitar tudo que viesse do governo “ilegítimo”. Teto de gastos, reforma
trabalhista e reforma da previdência eram encarados como itens de um pacote
golpista, não importando, portanto, o mérito particular de cada reforma, o que
cada uma dessas matérias trouxesse de atendimento ou recusa dos diversos
interesses sociais envolvidos, muito menos as soluções objetivas resultantes
que pudessem surgir para esses embates legítimos, em termos de governabilidade
do país, superação da crise econômica e combate ao desemprego galopante,
requerimentos inadiáveis face a situações concretas que se apresentavam ao
final da guerra do impeachment. Tudo isso perdia sentido, aos olhos da
esquerda politicamente destituída e conflagrada, diante da necessidade de
protestar e, quiçá, reverter a situação política. Os olhos e cérebros mais
moderados dessa oposição aguerrida miravam as eleições de 2018. Os menos
comprometidos com rituais democráticos usavam o impeachment como “prova”
de que a democracia era finda, o que requeria outros métodos de luta. Assim, no
Congresso, não houve olhos e cérebros relevantes para procurar, na matéria da
reforma trabalhista, o que, afinal, era interesse de trabalhadores. Por certa
lógica se esperaria que, vendo-se em clara minoria, a esquerda procurasse
reduzir danos. Mas para isso era preciso ancorar-se no projeto moderado do
Executivo, que o relator radicalizava. Como a polarização política não permitia
tal cogitação, viu-se a base governista inteiramente liberada para aderir à
passagem da boiada. E a esquerda restrita ao esperneio cheio de adjetivos, que
se encontra na consulta a discursos nos arquivos.
Falta de firmeza? Hipocrisia? Tudo isso
pode ter ocorrido e ser usado como argumento contra a base do governo Temer
para que a esquerda justifique sua própria fuga à responsabilidade política,
naquele momento. Fuga ainda mais dramática se atentarmos à conivência de
lideranças sindicais de esquerda para com essa conduta absenteísta da base
parlamentar. Agiram como correias de transmissão de uma causa partidária,
defenderam por isso o status quo trabalhista, reagindo à própria ideia de
reforma. Erro político também porque se aprovou uma lei que foi além e em
muitos pontos ficou aquém do objetivo declarado da modernização, chancelando e
estimulando precarizações talvez evitáveis por normas fixadas por pacto para
proteção de trabalhadores tradicionais. Pactos que poderiam ser conseguidos, ou
não, mas que sequer foram tentados por quem tinha mandato, parlamentar ou
sindical, para fazê-lo.
É preciso compreender então que Lula, caso
faça, se eleito, uma proposta de revisão dessa lei, poderá com isso fazer algo
muito mais construtivo do que revogar a lei de 2017. Será uma oportunidade de,
pelo debate público e pela coordenação do Estado, corrigir os excessos que a
tornaram, em parte, instrumento unilateral das empresas em desfavor dos seus trabalhadores.
Mas também atualizar e aprofundar o que ela trouxe de positivo, quando encarou,
por exemplo, o inadiável problema de regrar relações trabalhistas de milhões de
terceirizados e temporários. Sua revisão pode permitir, inclusive, responder,
de modo prático, aos novos reclamos sociais de milhões de indivíduos concretos,
jovens e maduros, ligados ao fenômeno, que parece irreversível, da
multiplicação espantosa dos trabalhadores de aplicativos que a pandemia intensificou.
Em suma, esse é tema politicamente nobre, pelo enorme interesse público que
desperta e pela chance que dá à esquerda de se tornar contemporânea. Não é
sensato incluí-lo entre os sinais de recusa de Lula a um diálogo ao centro.
Muito pelo contrário.
Mas os sinais de recusa são, por outro
lado, também evidentes. O silêncio da liderança de Lula diante de toda sorte de
diatribes e impropérios que se tem dito, na sua praia partidária e arredores,
para bloquear soluções de compromisso ao centro de um hipotético governo seu é
um dado preocupante. Indício de que sua campanha e, pior, de que seu governo poderá reproduzir a lógica
pendular que, na experiência dos antigos partidos comunistas, ficou conhecida
como política do pântano, praticada, por suas cúpulas, contra as esquerdas e as
direitas dos partidos. Esse método político tem aplicação bem mais ampla
do que naquelas realidades. Ao sabor das suas táticas, uma cúpula (ou um chefe
político) ora afaga aliados, atuais ou futuros e, como astuta raposa,
recepciona-os com declarações simpáticas, narrativas concessivas e jantares
calorosos, ora estimula os radicais do entorno, soltando seus lobos ou demônios
para afugentar visitas como se fossem só elas as raposas. Estaremos, se as
urnas conferirem a Lula mais um mandato, imersos nessa trama supostamente maquiaveliana?
Digo supostamente para fazer justiça ao gênio republicano do florentino, que não
propunha o uso das artes da política em benefício de um varejo pessoal. É na
grandeza do Estado e na felicidade do seu povo que o governante sábio, porque também
prático, encontra o poder que persegue. No mundo de hoje, em que a razão criou
instituições coletivas que limitam de modo perene a vontade política do
poderoso, é possível a grandeza de um estado e a felicidade de um povo serem
achadas no pântano em que se planta um governante apenas tático? É razoável pensar
que nem no tempo de Maquiavel um tal sabido teria bom futuro.
Essa "inteligência" tática de uma
esquerda que se achava esperta ajudou uma vez a quase arruinar o país. Achou
que podia ganhar eleições com muitos parceiros e depois governar sozinha, sem
programa comum pactuado com eles, somente contratando, com recursos públicos, o
apoio que se fizesse necessário a cada instante. Essa tentação pode ficar maior
se Lula puder vencer a próxima eleição como um caudilho, sem compromissos com
ninguém, a não ser com o “povo”. E impressiona a quantidade de pessoas de boa
formação, boa história e boa intenção, que incorre no autoengano de supor que
na hora certa ele saberá encontrar uma solução “inteligente”. Assim até
eleitores à direita ficam menos inquietos com a ideia de dar uma carta branca a
Lula para governar como déspota pragmático, pois ele estaria livre, inclusive,
para enquadrar seus radicais e governar com a turma mais moderada e o PIB. Vale
lembrar: ACM também era, para seus seguidores, um PHD em política, infalível,
até que falhou tropeçando na própria soberba e foi varrido do mapa político.
Morreu sem trono para legar, ficou a memória. Há raciocínios na praça que têm a
mesma índole do raciocínio carlista que sacralizava o chefe.
Iniciativas como a de tematizar a reforma
trabalhista na campanha aparecem como chance de o país sair do pântano. Essa é
uma inteligência que tem a sabedoria de entender que suas proezas, como todas
as proezas humanas, têm prazo de validade. O prazo das proezas do lulismo antigo
está próximo de vencer. Sem exagero, está na prorrogação, vivendo, na verdade,
do seu passado. Se acreditar que seu barro é distinto do que molda os humanos
comuns, o mito da esquerda, com a cumplicidade de sectários e áulicos, pode não
ver sua recente prisão como lição realista sobre seus próprios limites. E por
essa soberba, não por uma conspiração qualquer, terminar perdendo uma eleição
quase ganha. Isso poderá ocorrer se ele deixar cair no chão a bandeira da
pacificação nacional, que lhe surge como chance de consagração de sua liderança.
Um grupo de jogadores, profissionais como ele, mas antenados para a delicadeza
do momento coletivo do país, pode armar um jogo alternativo, com o bagaço dessa
bandeira.
*Cientista político
e professor da UFBa
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