O Globo
Durante uns poucos dias, duas tribos
humanas estiveram lado a lado numa rua de Melbourne, na Austrália, para clamar
por mais justiça e mais liberdade. Pareciam comungar do mesmo ideário, apesar
de a parceria ter durado apenas umas 80 horas — já foi muito, visto que tinham
pouco em comum. A tribo mais antiga há muito deixara de atrair jornalistas,
pois protestam desde dezembro de 2020, todo santo dia (as normas da Covid-19
permitindo), em frente ao antigo Carlton’s Park Hotel, transformado em centro
de internação compulsória. Exigem a libertação de refugiados estrangeiros que
buscaram abrigo na Austrália e ali estão confinados sem prazo para sair.
A segunda tribo, energizada e ruidosa, apareceu de supetão no mesmo endereço, com a mídia mundial. Juntou compatriotas, admiradores e simpatizantes do sérvio Novak Djokovic, um dos atletas mais celebrados do planeta. Como se sabe, o extraordinário tenista havia sido interceptado pela imigração australiana na semana passada e, por não estar vacinado nem apresentar a documentação adequada de exceção, fora encaminhado ao local de confinamento dos refugiados. Entre espetaculosas idas e vindas judiciais em torno da deportação ou não do astro, e de sua eventual exclusão do Aberto da Austrália, que se inicia amanhã (esta noite no Brasil), apenas uma das duas tribos permanecerá no local — a dos invisíveis.
Não é de hoje que a tensão entre
encarceramento em massa e igualdade faz parte da história do país onde, quase 250
anos atrás, 11 navios britânicos despejaram um carregamento de prisioneiros
comuns e transformaram aquelas terras em colônia penal. Em tempos mais
recentes, a Austrália passou a ser vista como oásis para trabalhadores
estrangeiros (um quarto de sua população é nascida no exterior), em parte pelo
controle draconiano que exerce sobre suas fronteiras. Mas não para os que
conseguem aportar naquelas terras vindos pelo mar, como refugiados desvalidos
em busca de asilo ou trabalho. Estes se dão mal. Até 2014, eram despachados
para uma prisão no deserto ou para a ilha penal de Nauru, sob condições
sub-humanas denunciadas pela Anistia Internacional. Outros vão parar em centros
como o de Melbourne, junto de estrangeiros não vacinados que tentam burlar as
normas da imigração. Portanto o despacho do tenista para o hotel Park não seria
propriamente uma novidade, fosse ele um desconhecido. Foi um estrondo porque
naquele local nunca havia dado entrada tamanha celebridade, de 34 anos e
patrimônio de US$ 220 milhões, com toda uma indústria de esporte e
entretenimento atrelada a seu desempenho em quadra.
No terceiro dia de confinamento, por
decisão judicial temporária, o “Djoker” conseguiu ser transferido para uma
residência longe dali. O que levou seus fãs a festejar em júbilo uma dupla
vitória, apesar de também temporária — do seu ídolo e do que consideram o
direito à liberdade individual de dizer “não” à vacina. Na mesma praça, em tom
mais acabrunhado, os que há anos protestam contra o confinamento dos refugiados
esquecidos deixaram de cantar “Liberdade para todos”. A esperança de surfar no
interesse súbito da mídia se dissolveu em silêncio, escreveu Cait Kelly no
Guardian, sobre os que foram parar na Austrália em busca de segurança, não para
jogar tênis. “Corta o coração ver tamanho interesse e atenção se dissiparem de
novo”, ouviu de uma das ativistas. As várias entrevistas agendadas com os
refugiados não aconteceram. Um interno declarou ao repórter nunca ter sido
chamado pelo nome em nove anos de confinamento. Outro contou que ali não entra
luz nem ar — as janelas são lacradas. Vegetam ignorados e esquecidos e tiveram
seu sopro de esperança ao perceberem uma movimentação atípica. Talvez
imaginassem que o interesse na rua era por eles.
A grande maioria dos australianos aplaudiu
o rigor inicial do veto a Djokovic, movida por justa indignação à petulância
antivacina do tenista, num país em que todos se submetem às restrições
draconianas do governo no combate ao vírus. O próprio primeiro-ministro
conservador, Scott Morrison, farejando a inclinação da opinião popular, tratou
de inverter o curso. Fez-se de esquecido por ter concordado com a autorização
inicial do estado de Victoria para a entrada do ícone. “Se vocês pensam que são
os alemães que gostam de regras, apresento-lhes meus compatriotas
australianos”, alardeou a reboque, pensando nas eleições gerais de maio
próximo.
O saldo positivo do imbróglio deveria ser
claro. A saber, que uma liberdade individual não pode e não deve se sobrepor
aos direitos e liberdades coletivos. Extrapolou em muito o universo do tênis,
estremeceu de leve o ar rarefeito dos privilegiados, sinalizou a futuros
ex-governantes negacionistas que, enquanto durar a pandemia, convém ficar
entocados em casa. De quebra, ainda oferece ao próprio Djokovic uma chance de
fazer jus aos US$ 153 milhões que já embolsou em prêmios: que tal se interessar
pela sorte dos refugiados confinados ad aeternitatem na Austrália? Para isso,
nem precisaria se vacinar. Isso já seria pedir demais.
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