domingo, 16 de janeiro de 2022

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

A tentação de gravar tudo na Constituição

O Globo

Com 250 artigos — acrescidos de mais 118 em disposições transitórias —, 114 emendas desde a promulgação e 76.413 palavras na versão mais recente, a Constituição brasileira é a segunda mais extensa do mundo, perdendo apenas para a indiana. Em escopo temático e direitos garantidos, poucas chegam perto dela. Estão inscritos na nossa Carta os portos lacustres, a polícia ferroviária federal e até o Colégio Pedro II. Durante a Constituinte, nas palavras memoráveis de Roberto Campos, “cada parlamentar sentia a tentação insopitável de inscrever no texto sua utopia particular”.

O resultado é a profusão de emendas que até hoje tentam corrigir — e continuam a engordar — o texto constitucional. Cinco anos atrás, ele tinha 69.436 palavras. Desde então já ganhou quase 7 mil, um crescimento superior a 10%. A “tentação insopitável” prossegue na forma de outra expressão consagrada por Roberto Campos: a “fúria legiferante” das Propostas de Emenda Constitucional, ou PECs. Há 997 em tramitação na Câmara e 344 no Senado. Parece que tudo o que se quer consertar no Brasil envolve alguma emenda à Constituição. Trata-se, porém, de um trâmite intrinsecamente lento e politicamente penoso, que envolve duas votações com maioria de três quintos em ambas as Casas Legislativas. Reformas essenciais poderiam começar sem a necessidade de mexer na Carta. É o caso de duas das mais urgentes: a tributária e a administrativa.

No campo tributário, quase todos os impostos são regidos por leis ordinárias, cuja mudança exige esforço legislativo bem menor que uma PEC. Mais que isso, boa parte da insegurança jurídica responsável pelo contencioso recorde no Brasil — R$ 5,4 trilhões em 2019, segundo estimativa do Insper — deriva de interpretações dos milhares de normas da Receita Federal, decisões do Carf e outras regulações que formam o proverbial “cipoal tributário”.

O Poder Executivo poderia criar normas para identificar as interpretações que dão mais problema no Carf, exigindo que as regras ficassem claras para todos. A Receita Federal poderia ser obrigada por lei a publicar opiniões mediante questionamentos (avisos aos contribuintes), de modo a evitar práticas que resultem em autos de infração. Nada disso depende de mudar a Constituição — e só isso já traria outro grau de segurança jurídica aos negócios.

Na gestão do funcionalismo, foco da reforma administrativa, várias mudanças também prescindem de piruetas constitucionais. Entre oito exemplos elencados numa análise do Instituto República.org, três se destacam: 1) o projeto que disciplina os supersalários no Executivo e no Judiciário, eliminando os abusos das verbas indenizatórias; 2) o que estabelece critérios técnicos para a ocupação dos cargos comissionados; 3) o que enfim regulamenta o desligamento dos funcionários públicos que apresentem baixo desempenho, como determina uma Emenda Constitucional de 1998. Nada disso depende de mexer na Constituição.

A “tentação insopitável” de gravar tudo na Constituição — para, presume-se, evitar recursos ao Supremo questionando as novas leis — tem tornado as reformas mais difíceis e custosas. Sobra a “fúria legiferante” e falta o que a tributarista Vanessa Canado, do Insper, chama de “trabalho de prancheta”: o estudo paciente e minucioso de medidas que, mesmo não tão vistosas quanto uma PEC, podem trazer resultados mais rápidos e eficazes.

Avaliar interferência do 5G em aviões é questão mais jurídica que técnica

O Globo

Fazem bem a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Embraer em produzir um estudo detalhado sobre a possibilidade de as antenas da quinta geração da telefonia celular (5G) interferirem nos equipamentos de navegação aérea do país. Mas o resultado será mais uma garantia política e jurídica para evitar problemas, já que a possibilidade técnica de isso ocorrer foi analisada e descartada por diversos estudos.

A iniciativa das autoridades brasileiras foi precipitada pela decisão das operadoras americanas de adiar a estreia do 5G, prevista para este mês em várias cidades, diante de um alerta da Administração Federal de Aviação (FAA) mencionando a “possibilidade” de que os sinais de 5G interferissem nos altímetros usados para pousar aviões em situações de baixa visibilidade.

Tais equipamentos funcionam na frequência entre 4,2 GHz e 4,4 GHz, próxima da usada para a telefonia 5G nos Estados Unidos, entre 3,7 GHz e 3,98 GHz. Certos altímetros não dispõem, segundo a FAA, dos filtros necessários para descartar sinais que transbordem sua frequência de funcionamento, daí o temor de interferência.

A questão foi levantada no início da implantação do 5G nessa faixa de frequência, conhecida como banda C. A Comissão Federal de Comunicações (FCC), responsável pela alocação do espectro americano, deixou uma faixa de segurança de 220 MHz entre as frequências do 5G e dos altímetros, denominada “banda de guarda”. Na ocasião, a própria Boeing sugeria que 100 MHz seriam suficientes. A FCC foi além do dobro para garantir a segurança.

Ainda assim, a indústria aeronáutica baseou seu pedido contra o 5G num estudo do Instituto de Sistemas para Veículos Aeroespaciais (AVSI), que apontava problemas nas simulações para o pior cenário. “Mentes claras precisam saber separar o que é só uma possibilidade hipotética baseada nas premissas do pior caso do que é altamente provável com base no uso no mundo real”, escreveu o ex-presidente da FCC Tom Wheeler em análise da questão.

Outro estudo, da empresa de engenharia Alion, criticou as hipóteses extremas do estudo da AVSI e descobriu que os altímetros falhavam em virtude da interferência de outros altímetros, não dos sinais do 5G. Ao analisá-lo, os técnicos da FCC descartaram que a interferência pudesse ocorrer em “cenários razoáveis” ou mesmo em “imagináveis dentro da razoabilidade”.

No Brasil, a interferência é ainda menos provável, pois a “banda de guarda” entre as faixas de frequência dos altímetros e do 5G é bem maior: 500 MHz. Isso acontece porque, no Brasil, a banda C para o 5G foi liberada entre 3,5 GHz e 3,7 GHz (essa faixa é reservada para múltiplos usos nos Estados Unidos). Os problemas na alocação do espectro são, desde o início, a principal razão para o atraso dos americanos na tecnologia 5G. Por operar na faixa de 3,5 GHz, a China conseguiu desenvolver equipamentos melhores e mais baratos. Não se tem notícia de que por lá, onde o 5G está em funcionamento desde 2019, tenha causado algum problema no pouso dos aviões.

Diagnóstico de terra arrasada é enganoso

O Estado de S. Paulo.

Ignorar o muito que se fez nas últimas décadas é um modo certeiro de impedir a resolução dos problemas que ainda persistem. Houve progressos relevantes em muitas áreas

A crise social e econômica, aliada a contínuas confusões e manobras políticas, tem sido ocasião para o surgimento de diagnósticos acentuadamente negativos sobre o País. Não são meras avaliações pessimistas ou que dão ênfase a alguns aspectos especialmente dramáticos da realidade contemporânea. Trata-se de outra modalidade de diagnóstico. De forma categórica, tais diagnósticos negam a existência – nos últimos 30 anos ou mesmo nos últimos 40 anos – de qualquer avanço significativo para a população. Segundo essa tese pretensamente realista, as últimas décadas do País teriam sido rigorosamente perdidas.

São muitos os problemas que precisam ser enfrentados. Além disso, a história nunca é uma linha contínua de progresso. Ao olhar a trajetória nacional dos últimos anos, detectam-se vários casos de retrocesso institucional, social, político e econômico, alguns deles recentes e muito prejudiciais. De toda forma, não corresponde aos fatos a avaliação de que, desde os anos 80 do século passado, não teria havido avanços significativos para a população.

Nos últimos 40 anos, houve progressos relevantes em muitas áreas; por exemplo, no funcionamento das instituições, no exercício das liberdades cívicas e, muito especialmente, na imensa maioria dos indicadores sociais e econômicos. Basta ver que, no período, o País reduziu a mortalidade materna e infantil, o analfabetismo e o número de famílias em situação de miséria.

O momento atual, em que muitos brasileiros voltaram a passar fome ou não têm perspectiva de emprego, não é muito propício para louvar os indicadores sociais nacionais. Velhas e novas desigualdades estão escancaradas nas ruas de todas as cidades. No entanto, ignorar os progressos realizados nas últimas décadas é um modo certeiro de impedir o enfrentamento dos problemas que ainda persistem.

Desde os anos 80, foram feitas importantes reformas, que trouxeram benefícios significativos para a população. São muitos os exemplos: a extinção da chamada “conta movimento” do Banco do Brasil, a estabilidade graças ao Plano Real, a legislação referente à responsabilidade fiscal, as privatizações dos anos 90, o marco jurídico das agências reguladoras, a universalização do ensino fundamental, a legislação ambiental e o marco civil da internet. Tudo isso proporcionou melhorias importantes para o País.

Além disso, os diagnósticos que pretendem transformar o País em terra arrasada ignoram um aspecto importante da vida nacional. Nos últimos 40 anos, houve muitas políticas públicas que deram certo. No período, Executivo e Legislativo – nas esferas federal, estadual e municipal – acertaram muitas vezes. O País tem hoje experiências muito positivas, que se mostraram altamente eficazes, no campo da educação, da saúde e da infraestrutura, por exemplo.

Há muito o que avançar, mas seria injusto ignorar o muito que se fez. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem muitas deficiências, mas é inegável que a população tem hoje um atendimento de saúde muito melhor do que há 40 anos. E isso não é resultado da sorte ou da mera passagem do tempo. É fruto de decisões políticas corretas e, de forma muito especial, do trabalho dedicado de muita gente séria e competente, ao longo de todo esse tempo. Há ineficiência, desperdício e malfeitos no setor público, mas há também excelência, compromisso e persistência.

O diagnóstico que não vê nenhum avanço não é apenas equivocado. Ele difunde implicitamente – às vezes, de maneira explícita – a mensagem de que as instituições não funcionam, de que o serviço público não funciona e de que o Estado é um fracasso. Todas essas ideias são utilizadas depois para sustentar a causa da antipolítica e, em último termo, para desmerecer o regime democrático. É um sofisma perigoso que, com sua parcial verdade aparente (destaca os problemas) e sua mentira oculta (ignora os avanços), ataca não apenas os princípios do Estado Democrático de Direito, mas corrói o próprio tecido social, ao reduzir a coletividade à dimensão da inutilidade. Há muito a avançar e, precisamente por isso, não se deve destruir o que foi feito.

A ofensa de cada dia de Bolsonaro

O Estado de S. Paulo.

Em tática diversionista, Bolsonaro agride quem vê como adversário. Sem fundamento, inventa acusações contra ministros do STF, assim como havia feito com a Anvisa

No início do quarto ano de governo, Jair Bolsonaro deixa claro que não tem nenhuma intenção de mudar seu comportamento. Seus recentes atos consolidam a imagem do governante que não governa, desejando manter-se tanto quanto possível alheio às responsabilidades do cargo. E, quando as circunstâncias lhe são desfavoráveis – afinal, suas confusões e omissões produzem consequências –, Jair Bolsonaro reage agredindo e fazendo insinuações contra quem considera seu adversário.

Há um país a ser governado, com problemas a serem enfrentados. A fome voltou. A taxa de inflação ultrapassou os dois dígitos. O desemprego continua dramaticamente alto. Diante dessa situação, Jair Bolsonaro opta pela tática diversionista. Sem nenhum fato novo por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente voltou a agredir os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, vinculando-os à campanha do PT ao Palácio do Planalto.

“Quem é que esses dois pensam que são? Quem eles pensam que são? Que vão tomar medidas drásticas dessa forma, ameaçando, cassando liberdades democráticas nossas, a liberdade de expressão?”, questionou Jair Bolsonaro em entrevista à Gazeta Brasil, um site que o apoia. “Eles têm candidato. Os dois, nós sabemos, são defensores do Lula, querem o Lula presidente”, disse.

A afirmação de Bolsonaro não tem nenhum apoio nos fatos. Tivesse prevalecido no Supremo o entendimento jurídico do ministro Luís Roberto Barroso, Luiz Inácio Lula da Silva ainda estaria preso e inelegível. Ou seja, Jair Bolsonaro simplesmente inventa uma acusação irresponsável.

Mesmo que não tenha qualquer credibilidade, a insinuação de Jair Bolsonaro é gravíssima. Com todas as letras, o chefe do Executivo federal afirmou que dois ministros do Supremo estão atuando, em sua atividade jurisdicional, para favorecer determinado político. Trata-se de acusação que fere não apenas a honra de integrantes do STF – o que por si só é grave e ofende direitos –, mas ataca o próprio Judiciário.

Ao difundir, sem nenhuma base factual, desconfiança sobre a isenção e a independência do Supremo, Jair Bolsonaro descumpre o compromisso que fez de defender a Constituição. A credibilidade da Justiça, assim como a do sistema eleitoral, é elemento essencial de um Estado Democrático de Direito. Não pode o presidente da República, como se fosse algo banal, sem importância, difamar a honra de ministros do STF, acusando-os de descumprir a Constituição e a Lei Orgânica da Magistratura.

Dias antes, Jair Bolsonaro havia usado a mesma tática pouco honrosa. Ao criticar a recomendação da Anvisa sobre a vacinação infantil contra a covid, fez insinuações sobre a honestidade de funcionários e dirigentes da agência. Não havia nenhum fundamento para a acusação. Era apenas leviandade. Era apenas o presidente Bolsonaro reagindo por ter sido contrariado pela Anvisa.

Espera-se mais, muito mais, de um presidente da República. A batalha política, por mais dura e intensa que possa ser, não autoriza esse tipo de comportamento que, alheio aos fatos, ao Direito e às regras mínimas de civilidade, agride e ofende gratuitamente o outro. Não é assim que se faz política. Não é assim que se vive em sociedade. Mesmo que Jair Bolsonaro não tenha especial apreço por suas palavras, estas continuam provocando muitos danos.

Há quem diga que, com seus recentes atos, Jair Bolsonaro sinaliza como será o tom da sua campanha de reeleição. A rigor, infelizmente, o presidente da República nunca deu motivo para se pensar que atuaria de forma diferente. Sua trajetória política, desde os primeiros mandatos no Legislativo, é uma linha ininterrupta de ofensa ao outro, a quem não compartilha com suas ideias e alucinações. Tal comportamento sempre foi grave, mas na presidência da República ganha tons ainda mais dramáticos.

A completar a farsa, aquele que ofende e difunde inverdades é todo suscetível quando lhe perguntam sobre proximidade com milicianos, salários de assessores ou cheques na conta da esposa. Felizmente, engana cada vez menos gente.

Clareza de propósito

Folha de S. Paulo

Frente ao quadro econômico, é fundamental que candidatos ao Planalto detalhem planos desde já

Na partida do ano eleitoral, esta Folha publicou artigos e entrevistas com os assessores econômicos de quatro dos candidatos mais bem posicionados nas pesquisas.

Participaram os colaboradores de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Sergio Moro (Podemos), Ciro Gomes (PDT) e João Doria (PSDB). Assessores dos demais candidatos, assim como do presidente Jair Bolsonaro (PL), não quiseram se manifestar.

Embora a lógica convencional diga que não há incentivo para as campanhas anteciparem propostas, a emergência nacional exige transparência desde cedo para que o país faça uma escolha informada. As transformações globais, aceleradas pela pandemia, demandam disposição política para amplas reformas que precisam ser debatidas já.

As análises das candidaturas têm pontos em comum. O principal é a necessidade de recuperação da capacidade do Estado em fazer políticas públicas. Requalificar a ação estatal, de fato, é condição para que o país possa reverter os retrocessos do governo atual e superar o quadro de estagnação e concentração de renda das últimas décadas.

A recuperação da estabilidade fiscal se insere nesse contexto, pois sem ela não será possível controlar a inflação e manter os juros baixos.

As divergências quanto aos meios para obtê-la logo aparecem, sobretudo em relação à atual âncora fiscal, o teto de gastos, defendido pela candidatura Doria, mas que, na opinião de Lula e Ciro, deveria ser reformado, especialmente no que tange aos investimentos públicos.

De um modo geral, os economistas ligados à centro-direita pregam um Estado enxuto, com ação focada em áreas de alto retorno social, além de boa regulação para incentivar investimentos privados.

Para a centro-esquerda, o papel do Estado é mais amplo. Na plataforma de Ciro, além da estabilidade macro, seria necessária a retomada dos investimentos públicos em larga escala, coordenando a iniciativa privada num plano nacional de desenvolvimento. O foco na indústria, caro ao desenvolvimentismo, aparece com clareza.

O tema do meio ambiente também figura com ênfases distintas, mas não deixa de ser curioso que tenha sido a direita a falar em carbono e desmatamento zero.

No entanto, é o artigo de Guido Mantega, representante de Lula, que destoa ao ignorar erros petistas sem apresentar propostas para o futuro. As pertinentes críticas ao governo Bolsonaro logo dão lugar a um resgate das mesmas receitas de tutela do Estado sobre investimentos e a retomada de políticas industriais, apesar dos repetidos fracassos nessa área.

O ano eleitoral está só começando, mas será fundamental que as campanhas desçam cada vez mais aos detalhes daqui para frente.

Agenda papal

Folha de S. Paulo

Ao condenar fake news e cancelamentos, Francisco se mostra atualizado, mas igreja tem suas falhas

Em discurso dirigido a diplomatas, o papa Francisco criticou a cultura do cancelamento, o pensamento único, o anacronismo historiográfico e as fake news, em especial aquelas contra a vacinação. No mérito de cada uma dessas questões, não há como discordar substancialmente do sumo pontífice.

No caso do cancelamento, muito melhor do que tentar destruir a reputação de um adversário é rebater os seus argumentos.

Fosse o papa Francisco um cidadão particular ou um ativista de ONG, só poderíamos louvar-lhe as agudas observações —bem mais pertinentes do que quando chamou de "egoístas" os que preferem animais de estimação a filhos, sendo que os próprios padres não estão autorizados a gerá-los.

Mas Francisco é também o líder da Igreja Católica, o que significa que ele carrega 2.000 anos de bagagem. E, se há uma instituição que, ao longo de sua história, abusou de cancelamentos e exceleu em impor o pensamento único, é a Igreja Católica.

Não se trata aqui de aderir àquelas correntes que abraçam o maniqueísmo histórico, segundo o qual a religião seria sempre uma força do atraso que bloqueou o quanto pôde o avanço da ciência e a liberalização dos costumes. A realidade é infinitamente mais complexa e nuançada do que isso.

O ponto central é que, mesmo com abertura para essas ponderações, não há como negar que a igreja esteja por trás de autos da fé e muitas outras manifestações de intolerância. Queimar hereges é, por qualquer ângulo, levar o cancelamento a seu estágio final.

Não é difícil, para quem abraça doses moderadas de relativismo, conciliar as coisas. A igreja agiu dessa forma numa época em que todos os poderosos o faziam.

Mas, para os que defendem que a moral é absoluta, como os religiosos, não é tão simples. É complicado afirmar que queimar pessoas vivas é um problema hoje, mas não era tanto no passado.

Tais considerações não têm o propósito de silenciar o papa Francisco. Seria injusto responsabilizá-lo pelos atos de seus correligionários pregressos. Mas, até para dar maior concretude a seu apelo por contextualização histórica, ele poderia ter abordado alguns desses problemas em seu discurso.

Seja como for, é alentador constatar que temos hoje um papa muito mais preocupado com os grandes desafios do presente do que com os dogmas do passado.

 

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