Valor Econômico
Dados das urnas revelam preferência do
eleitor
A mordaça imposta por Jair Bolsonaro aos
militares que fizeram a auditoria do funcionamento das urnas eletrônicas vale
mais do que qualquer relatório para atestar a segurança e a confiabilidade do
sistema brasileiro de votação, registro e contagem de votos.
Com milhões de bolsonaristas mobilizados,
bem como diversos órgãos civis e militares dos Três Poderes e ainda dezenas de
entidades representativas da sociedade, não houve relato de nenhum incidente
capaz de colocar em dúvida o resultado das urnas. Como acontece há décadas, a
Justiça Eleitoral triunfou mais uma vez.
Para além da eficiência e da segurança, nosso sistema eleitoral também é referência mundial na transparência e na qualidade dos dados divulgados. Qualquer cidadão pode acessar com relativa facilidade informações pessoais, arrecadação e despesas de candidatos, assim como o perfil do eleitorado e o resultado da votação. Tudo isso nos permite ter uma visão mais detalhada sobre os movimentos do jogo político e a preferência dos eleitores.
Na primeira semana após o primeiro turno,
imprensa e analistas se debruçaram sobre os resultados para extrair tendências,
identificando quais regiões demonstraram uma preferência por este ou aquele
candidato, se programas do governo deram voto ou quais estratégias de marketing
eleitoral funcionaram melhor ou pior, e por aí vai.
Existe, porém, uma base de dados do TSE
que, por ser muito trabalhosa, quase não é explorada pelos analistas. O que é
uma pena, pois ela nos permite uma visão quase microscópica do comportamento
dos eleitores no dia da votação.
Menos de 48 horas após o encerramento da
votação, o Tribunal Superior Eleitoral disponibilizou no seu portal de dados
abertos os arquivos do resultado das urnas em cada uma das quase 500 mil seções
eleitorais espalhadas pelo território nacional e exterior. Trata-se de uma
fonte valiosíssima de informações para verificar o que se passa na cabeça do
eleitor brasileiro, uma vez que cada seção eleitoral comporta, em média, 330
cidadãos aptos a votar.
O potencial de utilização desses dados para
fins de análise eleitoral é multiplicado porque o mesmo TSE publica também no
seu portal de transparência o perfil do eleitorado em cada uma dessas seções,
indicando quantos eleitores estão aptos a votar de acordo com a sua faixa
etária, estado civil, grau de escolaridade e gênero.
Quer saber se Bolsonaro recebeu mais votos
nas seções onde existem mais idosos ou se Lula realmente recebeu mais votos nas
áreas com maioria feminina? Basta cruzar os dados da votação em cada seção com
o seu perfil etário ou de gênero.
Como em geral no Brasil a distribuição de
renda tem um forte conteúdo territorial dentro de cada cidade, e ela está
associada ao nível de escolaridade, esses dados também podem revelar muito
sobre como pobres e ricos se posicionaram em relação a cada candidato.
É claro que nem tudo é perfeito em relação
a esses dados. Em primeiro lugar, os arquivos são muito pesados e dão um certo
trabalho para serem manipulados. Além disso, o zoneamento eleitoral nem sempre
guarda relação com as características econômicas das cidades - muitas vezes a
mesma seção cobre bairros ricos e pobres que são vizinhos.
Por fim, as informações sobre o perfil do
eleitorado nem sempre são as mais atuais, pois as pessoas mudam de residência e
não transferem seus títulos, além do que podem se casar e se divorciar, obter
um nível maior de escolaridade e até trocar de gênero sem comunicar essas
mudanças ao TSE.
Para a felicidade dos estudiosos, o
processo de recadastramento biométrico forçou cerca de 75% dos eleitores
brasileiros a se dirigirem à Justiça Eleitoral na última década, levando a uma
atualização dos dados. Uma evidência de como a biometria melhorou a qualidade
dos dados é que, apesar de a taxa de abstenção continuar negativamente relacionada
com o percentual de eleitores com biometria, o coeficiente de determinação foi
baixo, na casa de 0,07.
Tomando por base os dados da votação e do
perfil dos votantes por seção eleitoral, quais conclusões podemos tirar desse
primeiro turno em relação aos desempenhos de Lula e Bolsonaro?
Vencedor do primeiro turno, o ex-presidente
Lula demonstrou uma forte correlação positiva entre seus votos e o percentual
de eleitores em cada seção com baixa escolaridade (analfabetos, semianalfabetos
e com fundamental incompleto), assim com seus votos caem conforme há mais
inscritos com nível superior na seção eleitoral. A evidência dos microdados
eleitorais reforça a percepção de que Lula foi melhor nas regiões periféricas e
de menor renda, onde se verifica um grau de escolaridade mais baixo.
Em termos das interações com os demais
candidatos, chama a atenção que há uma forte correlação negativa entre as
votações de Lula e de Simone Tebet. Ou seja, nas seções onde a senadora
sul-matogrossense foi melhor, Lula teve menos votos. Isso é um recado para a
estratégia de eleitoral de Lula neste segundo turno: o tom de seu discurso pode
não ter a mesma receptividade nas regiões onde residem os eleitores de Tebet.
Num país tão dividido, os resultados de
Bolsonaro vão na direção inversa da obtida pelo petista. O atual presidente tem
pior desempenho nas seções de baixa escolaridade - nesse caso, a forte rejeição
de Bolsonaro no Nordeste puxa o resultado para baixo, mas há uma correlação
negativa entre escolaridade e voto bolsonarista também no Sudeste e Sul do
país.
Ao contrário do que seria de se esperar (e
indicado pelas pesquisas), não há sinais significativos de uma rejeição maior a
Bolsonaro nas seções com mais mulheres e nem uma preferência explícita por ele
onde predominam os idosos.
Na briga pelos votos angariados por Ciro e
Simone no primeiro turno, os microdados das seções eleitorais revelam que
Bolsonaro em geral foi melhor nas áreas que preferiram Tebet - em relação a
Ciro, a correlação é negativa, mas estatisticamente irrelevante.
Com as pesquisas passando por uma fase de
credibilidade abalada, fica a dica para quem quiser mergulhar nos microdados do
TSE. Dá trabalho, mas eles oferecem alguns insights muito valiosos para mapear
as estratégias dos candidatos.
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
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