- O Globo
As comemorações pelos 80 anos do filósofo e “pensador da contemporaneidade” Sérgio Paulo Rouanet reuniram no Rio, na Academia Brasileira de Letras e na Universidade Candido Mendes, uma série de intelectuais brasileiros e estrangeiros para três dias de debates. A maratona teve início na terça-feira, com uma conversa entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-ministro da Cultura no Museu de Arte do Rio (MAR).
Fernando Henrique destacou a capacidade de Rouanet de mobilizar pelo convencimento, pelo diálogo, “o que hoje em dia não é trivial”. Definindo-o como “um democrata”, que acredita na razão, no diálogo, Fernando Henrique não deixou de lado o polemista Rouanet, “que não quer destruir o antagonista, faz uma crítica para esclarecer, para iluminar”.
Na análise de Fernando Henrique, “vivemos num mundo em que a fragmentação predomina”. A constatação é a de que há “uma certa crise por toda parte da democracia representativa”, e Fernando Henrique perguntou “como é que vamos juntar o ‘demos’ (povo) à ‘res publica’ (coisa pública)?”.
“Como manter a soberania da vontade popular, que é essencial, e ao mesmo tempo garantir que as instituições funcionem?”. Nessa era de muita incerteza em que vivemos, entender o conhecimento, a liberdade, é mais pertinente que nunca, ressaltou o ex-presidente, destacando que a grande contribuição de Rouanet é exatamente essa, “a de dar destaque à razão, à capacidade de se mudar pelo convencimento”.
Como se pode exercer o pensamento crítico numa época em que as grandes narrativas estão num processo acelerado de derretimento, as certezas estão se desfazendo, o conhecimento é fragmentado e a indeterminação parece se inscrever na ordem natural das coisas?
Rouanet não concorda com a tese de que a pós-modernidade se definiria pelo eclipse das grandes narrativas. Algumas sobrevivem, lembrou, citando a grande narrativa da religião, “que hoje em dia está mais fanaticamente virulenta do que nunca, com o fundamentalismo religioso”.
Outra grande narrativa que deveria ter desaparecido e não desapareceu, na opinião de Rouanet, é o nacionalismo extremo: “Estamos vendo que o nacionalismo está de volta, a guerra da Crimeia está acontecendo de novo pelas mesmas razões: nacionalismos enraivecidos, nacionalismos rivais. Os conflitos da etnicidade estão em evidência pelo mundo”.
Fernando Henrique considera que para quem atua politicamente como ele “é preciso ter uma narrativa, você não dá sentido às coisas e não muda nada se não acrescentar valores à narrativa”. Num mundo de consumismo, de predominância dos mercados, a existência de alguns valores é fundamental para que as coisas não se desagreguem, para que se possa ter uma vida associativa, afirmou o ex-presidente.
Fernando Henrique lembrou Max Weber (sociólogo e economista alemão), que, ao mesmo tempo em que formulou a ética da responsabilidade, formula também a ética das convicções, uma sem excluir a outra. “Autonomia com responsabilidade, conciliar os dois conceitos”, lembrou Rouanet.
No mundo atual, com a modificação tecnológica que permite o acesso direto da informação e de convocação, não estaríamos na prática resolvendo essa contradição, perguntou Fernando Henrique. “Uma pessoa que está só em casa, mas se pertence a uma tribo da internet, está também em conjunto.
Não se trata mais do individualismo antigo, as pessoas querem participar, não aceitam mais as formas atuais de participação por delegação, querem participação direta, mas estão isoladas. Não sei se está surgindo uma nova maneira de conciliação desses dois momentos”.
Para Rouanet, a ideia da democracia mundial parece fundamental, e “sem ela não existe possibilidade de democracia interna, que é prejudicada pela tirania particularista que existe em dois ou três países hegemônicos. Países totalmente democráticos são tiranos no plano internacional”, afirmou Rouanet, numa crítica indireta aos Estados Unidos.
O homenageado lembrou que está havendo uma tendência na ciência política de substituir o termo “governo mundial” por “governança mundial”, que considera uma tarefa bem mais modesta e bem mais realizável. De uma certa maneira, o mercado leva a isso, comenta Fernando Henrique. “A integração global que já aconteceu leva à necessidade de uma governança global, que ainda não conseguimos”. Ele lembrou que, nessa última crise financeira, houve tentativas de conseguir regras mais firmes pelo menos de mercado, do sistema financeiro, “mas se avançou muito pouco”.
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