- Valor Econômico
• Estatais pagam caro para captar recursos no mercado
Arrombada a porta da Petrobras, ficou exposto o vazio legal de regras de governança para as empresas estatais. A aprovação de leis para cumprir a Constituição de 1988, até agora relegadas ao descaso, não vai consertar o passado. Mas é importante para viabilizar o futuro, sobretudo agora que o governo anunciou seu retorno ao mercado das privatizações e indicou como primeira iniciativa a abertura de capital da Caixa Seguros.
Passados 39 anos de vigência da Lei das S.A e 27 anos da Constituição, ficou claro o mínimo que é preciso fazer: mudar o artigo 238 da lei e regulamentar o artigo 173 da Carta Magna para, com decisões de Estado, reduzir o poder dos governos sobre as companhias públicas e sociedades de economia mista.
O projeto de lei apresentado pelo senador Aécio Neves (PSDB-MG), de autoria de Marcelo Trindade, ex-presidente da CVM, e de Arminio Fraga, ex-presidente do BC, é uma das propostas em discussão no Congresso que traz uma mudança revolucionária. Sugere que não se aplique às sociedades de economia mista o artigo 238 da Lei 6.404, que permite ao acionista controlador "orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou sua criação". Isso significa que as estatais que captam recursos no mercado teriam que orientar a atuação para a obtenção de lucro.
Se, por alguma razão, a companhia pautar suas atividades por objetivos de políticas públicas e não por resultados, isto seria orçado e o custo explicitado e financiado pelo Orçamento da União. "Se o poder público cria uma empresa aberta que capta recursos privados, ela terá que jogar o jogo privado e orientar a sua atividade para a obtenção de lucro", explicou Trindade.
Consagrada essa mudança, a Petrobras não poderia ter preços congelados pelo governo para ajudar no controle da inflação, como ocorreu no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Ou o custo do subsídio aos derivados teria que constar do Orçamento.
Assim se dá à sociedade condições de exercer o direito de escolher se quer que o escasso dinheiro público seja gasto com subsídio à gasolina, ou se prefere que o governo dê a ele destino mais nobre.
Arminio quer reformular a proposta para que mesmo as companhias públicas fechadas, por razões de eficiência orçamentária, não possam arcar com políticas públicas fora do Orçamento que é discutido e aprovado pelo Congresso.
"A existência de espaços orçamentários fora do Orçamento do governo é uma afronta à qualidade da nossa democracia, que exige total transparência para que possa se atingir a melhor alocação do gasto público", defende Arminio.
Essa é uma discussão importante: se é melhor colocar mais recursos na educação, subsidiar o consumo de gasolina ou reduzir impostos. "O Brasil vem há décadas evitando esse debate. Estamos chegando a um ponto em que ninguém sabe direito por que as coisas são feitas. Não há análise, não há crítica. E a questão do tamanho do Estado vem acontecendo a reboque dos desejos do lado do gasto", observou. O Brasil é relativamente pobre, desigual e é natural que os desejos existam. É preciso, porém, que caibam no Orçamento.
Tal como operam, as estatais estão num ciclo vicioso de má regulação da governança, que gera políticas que não são avaliadas, oneram o Orçamento (porque a conta acaba chegando ao contribuinte) e custa caro para a empresa. Com seus ativos desvalorizados no mercado, pagam caro para captar recursos.
"A urgência do assunto é em relação ao futuro. Esse governo está falando em levar companhias públicas ao mercado de capitais", comentou Trindade. Para Arminio, não faz sentido buscar recursos no mercado com uma base regulatória frágil, tendo que vender barato para " ter o direito de ter um orçamento paralelo".
Funcionam no país, entre empresas e suas controladas, 94 estatais do setor produtivo que empregam quase um milhão de pessoas. É inadmissível que "um grupo de empresas tão importante não esteja submetido, pela lei, aos mais rigorosos padrões de ética, eficiência e governança corporativa", argumentam ambos.
Ética e eficiência, entendem os autores da proposta, são questões culturais. E em ambos os casos, o exemplo de quem lidera é fundamental. Ao mesmo tempo, disseminada, a cultura da ética e da eficiência funciona como um "repelente" de más lideranças. "Você não vê a CVM ou o Banco Central em 'bocas de Matildes', acusados de corrupção. Por quê? Porque os gestores lá são pessoas técnicas, com reputação, o que gera uma cultura de ética na casa", exemplificou Trindade.
Os autores sugeriram uma forte estrutura de governança mediante a criação de conselhos, comitês e diretorias, com metas a serem atingidas e mecanismos de prestação de contas. Algumas das estruturas propostas já existem, mas os postos são ocupados por indicação política. O projeto de lei cria restrições ao preenchimento dos cargos que passam a ser vedados a ministros e a políticos em geral. Para ocupar vagas nos conselhos das estatais será exigida comprovada experiência técnica na área de atuação da companhia, dentre outros pré requisitos. Fecha-se, também, se aprovada a proposta, um vasto campo de complementação salarial para ocupantes de cargos comissionados do governo.
As sociedades de economia mista vivem, segundo Trindade, no pior dos mundos. "Do ponto de vista do olho do dono, ela é uma 'corporation'. Não tem dono. Do ponto de vista do poder, é uma companhia com um dono que impõe sua vontade na assembleia. Põe, como fez, 'goela abaixo' da Petrobras a obrigatoriedade de ter 30% de cada poço do pré-sal e dane-se". A história já provou que para ser uma companhia sem controlador tem que ter estruturas internas de controle muito intensas. Caso contrário, disse Trindade, os administradores usam a empresa em proveito próprio e não do acionista.
"O Brasil está vivendo uma crise de valores tremenda e tudo o que aconteceu na Petrobras, que era uma estrutura bem amarrada, pode estar acontecendo em toda a parte", sublinha Armínio. A proposta "traz uma semente que pode se espalhar para o governo com a cultura da ética e eficiência. Vai trazer uma novidade boa. Tenho muita convicção disso".
Pretender que o Congresso feche postos de trabalho para indicados dos partidos, ou que o Executivo concorde em abrir mão do controle das estatais não seria utopia? "É uma utopia fácil de realizar", acredita o ex-presidente da CVM.
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