- Folha de S. Paulo
Primeiro, veio o "brexit", o voto para que o Reino Unido abandonasse a União Europeia. Logo depois, o triunfo de Donald Trump, nacionalista xenófobo e isolacionista (ao menos na retórica; na prática, só se verá mesmo em janeiro).
Se já não fossem esses dois tremendos sustos, eis que a Europa se prepara para mais um ou dois neste domingo, 4, na forma de um novo plebiscito (na Itália) e de outra eleição presidencial (na Áustria, tema que deixo para outro dia).
A teoria abraçada pela maioria da mídia tradicional é a de que as duas votações medirão a força do populismo e/ou do nacionalismo depois da vitória de Trump, com efeitos supostamente devastadores sobre a unidade europeia e sobre a sobrevivência do euro.
No caso específico da Itália, escreve, por exemplo, a revista alemã "Der Spiegel": se vencer o não, "um referendo sobre se a Itália deve manter-se como membro da moeda comum poderia vir em seguida. Se a Itália, a terceira maior economia da moeda comum, vier a deixá-la, poderia por toda a União Europeia em risco".
São tantos os "ses" nesse texto que, com todo o respeito à qualidade da revista alemã, parece um pouco de exagero apontar desde já para o apocalipse.
Esclareço, por uma questão de transparência, que, como tenho dupla cidadania, já votei pelo "sim". Não sou portanto neutro nessa votação.
O que está em jogo na Itália não é, ao contrário do "brexit", a permanência no euro ou na União Europeia. Trata-se, simplesmente, de corrigir patentes imperfeições no sistema político, tantas que levaram à formação de 63 governos em 70 anos de democracia —nível de Terceiro Mundo e não da terceira maior economia da Europa.
São 952 parlamentares, o terceiro maior número depois de China e Reino Unido. Deles, 315 são senadores, dotados de igual poder que os deputados, o que leva a permanentes impasses.
O projeto que vai a voto reduz o número de senadores para cem, acaba com a eleição direta deles e, coerentemente, reduz seus poderes.
O problema que leva tanto susto aos europeus é o fato de que o primeiro-ministro Matteo Renzi transformou o voto em uma espécie de plebiscito sobre seu governo, chegando a anunciar que renunciaria se perdesse.
Essa hipótese assanhou todos os seus adversários, à direita, à esquerda e até ao centro. Consequência: as pesquisas estão dando vantagem para o "não" de entre 4 e 8 pontos percentuais.
Se eu fosse marqueteiro de Renzi, teria feito do voto um plebiscito contra a "casta", como é tratada a classe política italiana, tão desprestigiada como todas as suas congêneres no resto do mundo.
Como não o fez, coloca-se, de fato, a hipótese da sequência desenhada pela "Der Spiegel": Renzi perde, renúncia, convoca-se nova eleição, ganha o populismo local (o Movimento 5 Estrelas, do cômico Beppe Grillo), contrário ao euro e à União Europeia.
Mas é uma hipótese que precisa superar etapas nada fáceis: primeiro, não é seguro que, renunciando o premier, se convoquem eleições (Renzi é o quarto governante italiano sucessivo a chegar ao poder sem passar por eleição, graças a manobras palacianas).
Segundo, se houver eleições, é improvável que o M5S de Grillo faça de fato maioria suficiente para governar. Por enquanto, anda em torno de um terço do eleitorado.
Terceiro, a Itália é um dos mais europeístas dos países europeus, o que torna complicado aprovar, em eventual plebiscito, a saída seja do euro ou da UE.
Portanto, é mais aconselhável adotar a tática dos Alcoólicos Anônimos: um dia de cada vez ou, no caso, uma etapa de cada vez, antes de cantar vitória ou derrota definitiva.
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