- Valor Econômico
• Corrupção de político não é combatida com privilégio de juiz
Por uma feliz coincidência, minha coluna no Valor foi antecedida, nesta mesma semana, por importantes considerações de dois colegas cientistas políticos, que agora me serão muito úteis. Na quinta-feira, noutra coluna, Marcus André Melo recordou a percepção dos Federalistas americanos, pela pena de James Madison e Alexander Hamilton, de que o Judiciário seria o menos perigoso dos Poderes estatais, já que apenas agiria por meio dos demais ramos de governo. E anteontem, em entrevista, Rogério Arantes alertou para os riscos de um "governo dos juízes", forma peculiar de um "governo dos homens" sobreposto ao "governo das leis" e, por isto mesmo, aos limites de uma ordem livre.
Pois vale aproveitar e relembrar outro ensinamento dos Federalistas, atribuído tanto a Madison como a Hamilton, relativo aos freios e contrapesos ("checks and balances") do funcionamento dos Três Poderes. Diziam os "founding fathers" americanos que a melhor forma de assegurar que os ramos do Estado se contenham é opondo uns aos outros, aproveitando-se não das propensões virtuosas de seus membros, mas de suas ambições: "deve-se fazer com que a ambição se contraponha à ambição". Afinal, homens não são anjos (e, poder-se-ia acrescentar, homens poderosos são menos angelicais ainda), de modo que ao mesmo tempo que esse é o motivo pelo qual precisamos de um governo, é mais ainda a razão pela qual precisamos limitar nossos governantes - sejam eles do Executivo, do Legislativo, do Judiciário ou do Ministério Público. A nós, cidadãos comuns, cabe não sermos seduzidos por uns ou outros, mas aproveitarmos democrática e republicanamente seus embates.
Pois é exatamente esse jogo da ambição contra a ambição que temos presenciado. Veja-se a disputa entre todos esses atores que ganhou forma na tramitação das afamadas (ou talvez famigeradas) dez medidas contra a corrupção. Elas chegaram ao Congresso escudadas numa portentosa campanha de coleta de assinaturas populares por membros do Ministério Público, contemplando regras que certamente não eram de fácil compreensão (ou sequer conhecimento) para a maior parte dos signatários. Apreciadas pela Câmara, foram substancialmente atenuadas (com a retirada, inclusive, de disposições muito questionáveis num Estado democrático de direito) e ganharam o acréscimo de dispositivos voltados não só a inibir os inegáveis excessos, como também as prerrogativas funcionais inerentes à magistratura e aos promotores.
O afã de deputados e, depois, senadores em aprovar esse pacote repercutiu mal, obrigando-os a recuar. Note-se, entretanto, que nem tudo o que constava do projeto de lei original era razoável: havia muito ali de autorreforço institucional de juízes e promotores, mesmo que ao arrepio do devido processo legal e dos direitos individuais. Por outro lado, nas motivações de deputados e senadores não havia apenas a legítima preocupação com evitar tais excessos, mas também a intenção de limitar os atores do sistema de justiça inclusive no que é necessário ao combate à corrupção e à defesa da legalidade. Uns e outros não são anjos e, como esperado, suas ambições se digladiaram.
O embate também se travou na outra Casa do Congresso, tanto com o projeto do senador Renan Calheiros, de limitação aos abusos de autoridade, como em sua iniciativa de por freio aos supersalários do funcionalismo, fenômeno em que o Judiciário se destaca. Notável foi a reação a estas medidas pelas sempre diligentes associações de classe dos juízes, bem como alguns membros da hierarquia judiciária: a tentativa de limitar os estupendos estipêndios inviabilizaria a luta dos atores do sistema de justiça contra a corrupção. O fabuloso deste argumento é que ele aponta não haver como se combater a corrupção dos políticos senão garantindo-se os privilégios dos juízes.
Se aceitarmos tal raciocínio nos restará pouca esperança de que possamos viver numa república democrática, já que a eliminação da corrupção (república) requereria a aniquilação da igualdade (democracia) mediante o sustento, por toda a sociedade, de um estamento privilegiado no âmbito das instituições judiciais - ou seja, de uma aristocracia togada. Por um lado, tais privilégios se traduzem nas benesses nababescas usufruídas por juízes, como no caso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (um Estado falido), em que apenas 1 entre 861 juízes recebe dentro do teto constitucional - dentre eles a filha do ministro do STF, Luiz Fux, que desde 2012, mediante um pedido de vistas, suspendeu o julgamento de uma ação da Procuradoria-Geral da República que inibiria tais sinecuras. Melhor seria se devolvesse o processo e se declarasse impedido.
Por outro lado, os privilégios também dizem respeito à responsabilização de juízes e promotores pelo cometimento de transgressões no desempenho de suas funções. Já se tornaram parte do anedotário político nacional as frequentes "punições" - mediante aposentadorias proporcionais e afastamentos remunerados - de magistrados que cometeram transgressões.
Ironicamente, as iniciativas para corrigir tais distorções têm ganhado corpo no Congresso, motivadas em boa medida pela situação de acuamento em que se encontram muitas das principais lideranças políticas nacionais, devido à onda de investigações sobre corrupção, improbidade e outros malfeitos, capitaneadas por promotores, juízes e policiais federais. A motivação pode ser torpe, mas a agenda faz sentido (ambição contra ambição...), já que - ao menos num Estado democrático de direito - a cura para os males da corrupção não pode advir da aceitação de uma aristocracia togada irresponsável e associada com forças policiais (para o bem e para o mal) autônomas.
O poder judicial talvez já tenha sido, de fato, o menos perigoso dos ramos do governo. Isto, contudo, era verdade quando ele não dispunha da espada; porém, quando passou a se associar àqueles que a embainham, a lógica mudou. Este é o cenário que vivemos hoje.
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Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
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