- Folha de S. Paulo
• Combate à corrupção e as reformas econômicas são bens públicos valiosos, ao contrário do governo Temer
Desde o início, o governo Temer tenta obter, ao mesmo tempo, as graças da elite política, da opinião pública e do mercado. É a implicação inevitável de seu pecado original: a carência de legitimidade eleitoral.
FHC sintetizou a fragilidade, classificando-o como uma pinguela. Hoje, corroída pela ausência da esperada recuperação econômica e sob o bombardeio da megadelação da Odebrecht, a pinguela está prestes a ruir. Contudo, sintomaticamente, nenhuma força política tem a ousadia de indicar uma porta democrática de saída da crise.
O cientista político Marcus Melo equacionou o impasse, em fórmula elegante (Folha, 14/12). Não podemos ter, simultaneamente, o governo Temer, a Lava Jato e as reformas econômicas, mas apenas um par dessa tríade. Temer poderia sobreviver à devassa da Lava Jato pela renúncia às reformas, num surto derradeiro de populismo fiscal.
Em sentido oposto, o governo se salvaria por meio de um pacto bifronte: com o Congresso, para combater a Lava Jato, e com o mercado, para consumar as reformas econômicas. Finalmente, a terceira hipótese seria a substituição da pinguela arruinada por uma outra, mais sólida, capaz de realizar as reformas enquanto a Lava Jato conclui a limpeza das estrebarias fedorentas.
Marcus Melo rejeita a noção de "dilmização" do governo, pois Temer conserva uma maioria parlamentar. Já se verificam, porém, indícios de "dilmização" no comportamento do Planalto, que tende a operar sob um imperativo quase exclusivo de sobrevivência.
No núcleo governista e na sua base parlamentar mais fiel, esboçam-se tanto iniciativas de contenção das reformas, especialmente a da Previdência, quanto de sabotagem da Lava Jato, pela via de enxertos oportunistas no projeto de lei de abuso da autoridade. Num ambiente de incertezas, em meio à neblina, a elite política tateia as duas primeiras hipóteses de solução para o impasse.
Abdicando das reformas, Temer obteria um pacto político extenso, acalmando até mesmo as centrais sindicais, mas lançaria a economia numa espiral desastrosa de endividamento e inflação.
Alvejando a Lava Jato, o Planalto soldaria uma vasta base parlamentar, conseguindo até mesmo uma trégua com o lulopetismo, mas condenaria o sistema democrático à desmoralização absoluta. "Depois de mim, o dilúvio": nas duas alternativas, a pinguela assumiria a forma de uma ponte de mão única, que conduz ao passado.
O destino não existe. Temer tem, ainda, a prerrogativa de demonstrar que Marcus Melo e tantos outros analistas estão errados. Para isso, precisaria reconstruir o governo, afastando-se dos seus companheiros de sempre, rompendo com as figuras carimbadas pela Lava Jato e constituindo um ministério suprapartidário capaz de persistir no rumo das reformas em meio ao turbilhão dos inquéritos judiciais.
FHC parece investir nessa hipótese improvável quando conclama o PSDB a patrocinar uma obra emergencial de concretagem da pinguela.
O combate à corrupção e as reformas econômicas são bens públicos valiosos –ao contrário do governo Temer, que é apenas fruto casual do fracasso do lulopetismo. A pinguela pode ser substituída, mas não pelos meios conjurados por especuladores de diversos matizes, que apostam no caos institucional.
A ideia recorrente de antecipação das eleições flerta com uma violação constitucional. A proposta mais recente, de atribuição de poderes constituintes limitados ao atual Congresso, equivale a um golpe parlamentar.
Diante da falência do governo Temer, a solução democrática seria a convocação de uma Assembleia Constituinte com poderes para formar um governo transitório e refazer o pacto político nacional.
No fim, a soberania pertence ao povo. A eleição de uma Constituinte soberana representaria o reconhecimento do colapso da "Nova República", mas não uma ruptura com a democracia.
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