- Valor Econômico
O presidencialismo de coalizão não é o vilão da hora
Recentemente nossa democracia sofreu um revés. E, como sempre, as instituições políticas são responsabilizadas. O principal alvo de crítica desta vez é o presidencialismo de coalizão. De acordo com uma lógica tortuosa, estabelece-se uma relação entre a existência de corrupção e governos que constroem maioria por meio da distribuição de cargos aos partidos. Governos de coalizão em qualquer lugar no mundo são assim formados. Controlar postos governamentais é uma das maneiras pela qual os partidos podem ter influência nas políticas públicas. Alguns governos de coalizão são corruptos, outros não. Dentre os partidos de um mesmo governo, uns são corruptos, outros não. Da mesma forma, alguns governos unipartidários são corruptos, outros não.
Coalizões se formam com o fim de garantir votos no Congresso dos partidos que dela participam. Não é isso, porém, que gera governos corruptos. Maiorias são construídas para que políticas que emergiram do processo eleitoral sejam aprovadas. Nomeações visando objetivos espúrios, como a blindagem de ministros de conduta duvidosa, não são inerentes a governos de coalizão, seja no presidencialismo ou no parlamentarismo. Bipartidarismo e governos unipartidários não resolvem problemas de corrupção. Podem até agravá-los. As causas da corrupção devem ser buscadas em outros lugares. Mais uma vez pretende-se jogar a criança fora junto com a água do banho.
Democracia é o governo do povo. Como o povo governa e as formas de organização do governo do povo são outros quinhentos. Os países democráticos podem ser classificados de acordo com o grau de concentração de poder de suas instituições. Em um extremo estão as democracias com instituições predominantemente concentradoras de poder. O modelo é a britânica. O sistema eleitoral é majoritário, gerando bipartidarismo. Há fusão de poder entre o Legislativo (unicameral) e o Executivo, e o Estado é unitário. No extremo oposto estão democracias em que predominam instituições de poder difuso, cujo modelo é a Bélgica.
A democracia brasileira é mista. O poder é difuso no método de escolher os representantes do povo para a Câmara dos Deputados. O eleitor tem mais influência na escolha eleitoral, mas os partidos não são supérfluos, detêm o poder de definir os candidatos e, portanto, as opções a serem oferecidas. O federalismo distribui o poder político em três instâncias: a União, os Estados e os Municípios. O sistema de governo é dividido entre o presidente e um Congresso bicameral. Esse conjunto de instituições difusas abre mais canais de acesso às demandas da população, de seus grupos sociais e suas localidades. Incentivam a participação e aumentam a representatividade.
Por outro lado, o Executivo brasileiro possui amplos poderes legislativos que aumentam sua capacidade de aprovar políticas. Dessa forma, introduz-se no sistema político um componente majoritário. Eleito por maioria, em campanhas competitivas nas quais não restam dúvidas sobre a inclinação ideológica dos principais contendores, o presidente torna-se o principal propositor das políticas emanadas das expectativas e escolhas do eleitorado.
O processo de governo não se dá à revelia dos partidos ou contra a vontade da maioria legislativa. Pelo contrário. Implica negociação e compromissos. O Legislativo é parte integrante do chamado presidencialismo de coalizão. E portanto responsável pelos seus erros e acertos. Sob esse arcabouço institucional, a democracia brasileira avançou no sentido de garantir direitos e promover a inclusão social de parcela significativa das camadas mais vulneráveis da população. O Brasil é hoje, sem sombra de dúvida, bem melhor do que o Brasil entregue pelos militares.
Instituições, porém, não são imunes a ataques dos que visam corrompê-las. Por essa razão, não existe democracia consolidada. A história política da democracia americana, a mais longeva do mundo, é prova disso. Nos anos 1930, num momento em que as democracias europeias sucumbiam ao totalitarismo, a sobrevivência da democracia americana dependeu de muita negociação e compromisso com a poderosa representação congressual, que a todo custo pretendia manter a supremacia branca e o apartheid no sul do país. Episódios recentes também mancharam a democracia americana, como as discutíveis decisões de instituições locais e nacionais que alçaram Bush à Presidência, assim como dispositivos da lei de combate ao terrorismo. Os efeitos da recente campanha presidencial naquele país também já se fizeram sentir. Tanto que em sua nona edição, o relatório patrocinado e publicado pela "The Economist" exclui os Estados Unidos do rol das "full democracies" e os coloca, como o Brasil, no grupo das "flawed democracies". E é difícil prever o que vem por aí com o governo Trump.
O processo democrático é a melhor forma de resolver pacificamente conflitos de interesse. As diferentes instituições das democracias existentes buscam incentivar comportamentos desejáveis. Mas não são onipotentes. A sobrevivência da democracia requer negociação, paciência e muita tolerância. Eleger o presidencialismo de coalizão como vilão do momento que vivemos é tirar o foco de onde deveríamos mantê-lo. Ou diversionismo.
*Argelina Cheibub Figueiredo é cientista política, professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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