- O Globo
A diferença entre os militares de ontem e de hoje é radical, mas o Exército se recusa a examinar seu passado
Nunca duvidamos de que Geisel e Figueiredo soubessem das torturas e execuções: não era possível que ignorassem o que qualquer civil bem informado sabia. Descobrimos que Geisel as aprovava em “A Ditadura Encurralada” (2003), em que Elio Gaspari transcreve um diálogo no qual o ex-presidente diz: “Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.
O que não sabíamos é que Geisel acompanhava o assunto de perto, que deu seu aval pessoal à política de exterminar oponentes e encarregou o futuro presidente da República, Figueiredo, de decidir quem vivia e quem morria.
Não sabíamos porque não queríamos ver o óbvio: em uma estrutura rígida e hierarquizada como a militar, um líder centralizador e autocrático como Geisel não abriria mão de decidir o que deveria, ou não, acontecer. Graças à CIA, agora sabemos.
É possível que esse Geisel “vamos matar” de 1974 tenha se tornado um Geisel “já matamos o bastante, vamos parar” lá para o fim de 1975, o que teria provocado o confronto com a linha dura, que insistia na matança, e levado a seu enquadramento.
A posição de Geisel é indefensável, mas há quem a defenda. “Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece”, disse Jair Bolsonaro, legitimando o assassinato sem apontar alguém que esteja arrependido.
“Essas pessoas não têm qualquer amor à democracia e à liberdade. Eles querem o poder absoluto”, prosseguiu, referindo-se não àqueles que, pelas armas, obtiveram o poder absoluto e destruíram a democracia e a liberdade, mas aos que foram por eles assassinados.
É estarrecedor que um grupo que detinha poder absoluto se sentisse ameaçado a ponto de rasgar a Constituição (escrita por ele mesmo) para assassinar centenas de vítimas indefesas. E que presidentes da República tenham por isso aceitado se tornar assassinos.
A convicção da virtude leva as pessoas a atos espantosos. Em nome de uma “causa”, Geisel centralizou e organizou o assassinato, e Lula centralizou e organizou a corrupção. Por uma “causa”, os militares se sentiram autorizados a censurar, perseguir, prender, exilar, torturar e assassinar, e os petistas se sentiram autorizados a assaltar o Estado.
“Para salvar a cidade, tivemos que destruí-la”, disse um major americano acerca do vilarejo de Ben Tre, no Vietnã. Para “salvar” o Brasil, militares e petistas quase o arruinaram.
Sob Geisel, os militares assassinaram, por determinação do presidente, dezenas de pessoas; em 2018, por determinação do presidente, os militares estão a um passo de solucionar os assassinatos de Marielle e de Anderson (viva!), ocorridos há exatos dois meses.
A diferença entre os militares de ontem e de hoje é radical, mas o Exército já avisou que os documentos que corroborariam o memorando da CIA foram destruídos. Verdade ou mentira, dá na mesma: ambas as hipóteses revelam uma corporação que se recusa a examinar seu passado e a admitir o óbvio: que errou. Não há general capaz de dizer, simplesmente: “Eram tempos difíceis. Estávamos tentando acertar, mas erramos. Pedimos desculpas.”
Quanto aos petistas, pedir desculpas seria mais difícil, pois, em muitos casos, equivaleria a uma confissão de culpa e uma temporada na cadeia. Mas é hora, ao menos, de parar de desafiar a lei e a Justiça (e de elogiar Geisel).
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