quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Luiz Carlos Azedo - Bolsonaro e o novo sebastianismo

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“À crise de representação dos partidos soma-se a crise ética que desgastou os poderes da República e, por muito pouco, não implodiu os grandes partidos”

Quando do bloqueio continental de Napoleão à Inglaterra, justificativa para a invasão de Portugal pelas tropas do general Junot, os sebastianistas exultaram, por causa das profecias de Gonçalo Annes Bandarra, sapateiro e poeta de Trancoso, estudioso do Antigo Testamento, cujas trovas alimentaram o imaginário lusitano com o mito da volta do rei-menino, Dom Sebastião (Lisboa, 20 de janeiro de 1554 — Alcácer-Quibir, 4 de agosto de 1578), que desaparecera ao liderar uma cruzada no Marrocos.

Apesar das censuras e proibições da Inquisição, as trovas do Bandarra continuaram circulando por séculos, sob todos os pretextos, até mesmo a invasão napoleônica. Nascido na Córsega, Napoleão seria descendente do rei Sebastião e fora saudado pelos sebastianistas como o futuro chefe do Quinto Império, que faria sair do porto de Lisboa uma frota em direção à Ásia, para conquistá-la e convertê-la ao catolicismo. Novas impressões das trovas foram feitas em 1810, 1815, 1822, 1823, 1852, influenciando o pensamento sebastianista e messiânico de D. João de Castro, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, entre outros.

Portanto, não foi à toa que o sebastianismo ressurgiu no Brasil não somente nas manifestações folclóricas, como reizados e folias de rei, mas também em episódios como o de Canudos, no sertão da Bahia, que marcou profundamente a história política e militar da República Velha. Com alma lusitana, nosso populismo tem essa característica sebastianista, ou seja, gravita muito mais em torno da ideia de um salvador da pátria, um líder carismático, do que do nacionalismo econômico, do clientelismo e da conciliação de classes.

O período que vai da redemocratização, em 1945, ao golpe que destituiu o presidente João Goulart, em 1964, para alguns, foi marcado por governos populistas, mas isso é ignorar as grandes diferenças entre os governos Dutra, Vargas, Juscelino, Jânio e Goulart. Essa tese ignora as singularidades do pensamento político brasileiro e promove rupturas com o passado cujos resultados práticos foram dois impeachments: o de Collor de Mello e o de Dilma Rousseff. A fronteira entre a manipulação das massas e o real atendimento das demandas sociais é mais sinuosa do que o esquematismo teórico imagina. Havia um sistema partidário robusto até 1964, que era o verdadeiro alicerce da democracia brasileira, mas a tentativa disruptiva de supostamente superar a “política de conciliação” à esquerda resultou numa ruptura à direita.

Desde a Constituinte de 1988, a composição de um sistema robusto de representação esbarra na fragmentação exagerada dos partidos, que não pode ser atribuída apenas às lideranças políticas. Talvez a maior responsabilidade seja do Supremo Tribunal Federal (STF), que havia proibido a adoção de cláusulas de barreira para representação no Congresso, em julgamento ocorrido em 2006, quando a regra passaria a vigorar. Resultado: no final de 2015, o Brasil contava com 35 partidos, oito deles fundados a partir de 2011, três novos partidos somente em 2015.

Eleições
Em 2017, novas propostas de reforma política foram apresentadas: o fim das coligações em eleições proporcionais (deputados e vereadores), uma cláusula de barreira e a criação de um fundo eleitoral. No ano passado, a cláusula de barreira atingiu 14 dos 35 partidos então existentes: PCdoB (elegeu nove deputados), PHS (elegeu seis), Patriota (elegeu cinco), PRP (elegeu quatro), PMN (elegeu três), PTC (elegeu dois), DC, PPL e Rede (elegeram um, cada), PMB, PSTU, PRTB, PCB e PCO. Presume-se que em 2022 haverá drástica redução do número de partidos, o que forçará um reagrupamento partidário após as eleições municipais.

À crise de representação dos partidos, provocada, entre outras coisas, pela emergência das redes sociais, soma-se a crise ética que desgastou os poderes da República e, por muito pouco, não implodiu os grandes partidos. Entretanto, esse cenário catapultou Jair Bolsonaro à Presidência da República, por um pequeno partido, o PSL, que elegeu 51 deputados e cinco senadores. Esse resultado da eleição, porém, não resolveu a crise de representação dos partidos, cujo epicentro hoje é a saída do presidente Bolsonaro do PSL, depois de uma disputa pelo controle da legenda e dos recursos do seu fundo partidário com o deputado Luciano Bivar (PE), que comanda o partido com mão de ferro.

Bolsonaro tem todas as condições de construir seu próprio partido. Além do carisma, tem uma narrativa política conservadora, um programa econômico ultraliberal, o governo nas mãos, uma militância política agressiva e articulada em rede e, sobretudo, uma base eleitoral sebastianista, que acredita em milagres e num salvador da pátria. Entretanto, tem pela frente eleições municipais que funcionam como centrífuga do espectro partidário. Por isso, para construir um partido nacional que atenda os seus objetivos, precisa lançar candidatos a prefeito e organizar chapas proporcionais em milhares de municípios, inclusive porque o sebastianismo não é monopólio de ninguém, há outros candidatos a salvador da pátria.

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