segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Denis Lerrer Rosenfield* - Mercado e costumes

- O Estado de S. Paulo

Não há demagogia que resista a doença, morte, desemprego, queda de renda e de expectativas

As eleições para as Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado cruzam-se com as intenções demonstradas pelo presidente de uma minirreforma ministerial, tendo como pano de fundo as eleições de 2022. Mais importante ainda, como chegará o Brasil até lá, atolado em grave crise fiscal, desemprego, queda do produto interno bruto (PIB) e numa pandemia que não dá sinais de arrefecer? Nada é aleatório na correlação de forças que assim se estabelece.

No que diz respeito à reforma ministerial anunciada, há dois tipos de projetos em questão. Um seria uma reforma pró-mercado, mexendo com os Ministérios do Meio Ambiente, da Economia e das Relações Exteriores; outro seria pró-costumes, mexendo com os Mistérios da Cidadania, do Turismo, a Secretaria de Governo e a recriação do Ministério dos Esportes. Sob outra óptica, o mesmo estaria ocorrendo na disputa pelas duas Casas Legislativas, principalmente na Câmara, com as candidaturas em voga sinalizando para o mesmo cenário: o candidato do presidente adotando uma postura pró-costumes e o do grupo do deputado Rodrigo Maia, pró-mercado. À esquerda caberá escolher entre as duas, guardando a posição de partícipe espectadora. Pode ser decisiva por seus votos, porém perdeu protagonismo do ponto de vista das ideias.

A reforma ministerial pró-mercado estaria voltada para enfrentar os problemas do Brasil, a saber, crise fiscal, de investimentos, desemprego, renda e imagem no exterior. Isto implicaria o presidente ter uma visão de longo prazo, permitindo-lhe, se houver sucesso, a sua própria reeleição. O problema, contudo, é que Bolsonaro não tem visão de longo prazo, nem chega a ter clara noção da gravidade da crise atual, que se deve desdobrar com força no próximo ano. Ademais, isso implicaria uma reorientação do seu governo para o centro, abandonando posições ideológicas e cessando de compreender a política sob a forma da relação amigo/inimigo.

Outro tipo de reforma ministerial estaria voltada para o atendimento da pauta de costumes, como é o caso, por exemplo, do decreto presidencial que libera a importação de armamentos. No meio de uma enorme crise fiscal e sanitária, com pessoas sendo hospitalizadas e morrendo, o presidente preocupa-se com a cloroquina, os armamentos e políticas antivacina como se fossem uma questão de liberdade de escolha. Nesse sentido, suas negociações com o Centrão estão focadas em assegurar uma base parlamentar que lhe permita avançar em propostas desse tipo, para além de lhe assegurar um final de mandato tranquilo do ponto de vista legislativo.

Outra ordem de problemas se apresenta nas disputas pelas presidências da Câmara e do Senado. O presidente decidiu entrar pesado, procurando emplacar pessoas de sua estrita confiança. Na Câmara, seu candidato está afinado com sua pauta de costumes, embora tenha afirmado que também defenderia uma posição liberal, numa tentativa de agradar aos que se sentem relegados. O liberalismo não é porém, para ele, a questão central. Na oposição, a pauta pró-reformas econômicas é prioritária, na contramão do que o governo tem feito, uma vez que este, apesar de seu discurso, não tem avançado nessa área. Esboça-se aqui uma disputa entre posições conservadoras e liberais.

Ressalte-se ainda que a discussão sobre o tipo de reforma ministerial põe em cena os mais diretos interesses partidários por cargos e emendas. Uma reforma ministerial pró-mercado pouco oferece em benefícios, pois os ministérios envolvidos são de caráter técnico, não se adequando muito bem a perfis partidários. Não são, nesse sentido, objeto de interesse. Não é o caso dos Ministérios da Cidadania, dos Esportes e do Turismo, com muitos recursos e se adaptando a pleitos partidários, assegurando aos parlamentares influência eleitoral em seus respectivos Estados. Logo, estão mais propensos a esse tipo de reforma pró-costumes. Note-se, contudo, que o cenário eleitoral de 2022 em muito dependerá da situação econômica do País, que não será boa se nada até lá for feito. A pauta pró-costumes pode se mostrar insuficiente para os objetivos partidários. Não há discurso, não há demagogia que resistam à doença, à morte, ao desemprego, à queda de renda e de expectativas.

No curto prazo, a posição pró-costumes pode render dividendos ao presidente, mas no longo prazo tende a se esgotar na ausência de um efetivo enfrentamento da questão econômica, com a necessária realização de várias reformas, dentre as quais a tributária, a administrativa e a aprovação da PEC emergencial. Ou seja, o presidente Bolsonaro, se mantiver o seu olhar focado em seus ganhos imediatos, traduzindo-se por aproximadamente um terço de apoio do eleitorado, pode chegar exaurido a 2022 e, com ele, o Brasil. O País está sendo testado em sua resistência. De nada adiantam os discursos liberais de sua equipe econômica, se nada for feito na prática. A questão aqui é que as ideias liberais estão sendo politicamente contaminadas, desgastando-se sem se terem realizado. O perigo é que o liberalismo morra sem sequer ter nascido.

*Professor de filosofia na UFRGS.

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