quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Roberto DaMatta - O mais ou menos da crise

O Estado de S. Paulo / O Globo

No Brasil, Estado e sociedade sempre foram controlados pelos “donos do poder”

Freio ou furo o sinal? É roubo ou política? Na dúvida – disse o picareta federal dr. Ramiro – use mais ou menos. O Brasil é a solenidade do “mais ou menos”. O drama da duplicidade indica a nossa onipotência fidalga de achar que se pode conciliar tudo, esquecendo que o tempo não tem “mais ou menos”. Ele não para e não cessa de nos “pedir conta”, como diz uma assustadora poesia de Frei António das Chagas.

O poeta luso do século 17 pensava na nossa concepção de temporalidade. Pois o tempo é uma coisa e experimentá-lo como fenômeno é outra. E no Brasil deste século que já vai 21, a poesia demonstra a imoralidade de ainda não termos decidido se vamos permanecer no liberalismo aristocrático que combinava tudo com tudo, sem de coisa alguma prestar contas (como o laço entre escravidão e capitalismo; ou se vamos, afinal, nos afinar com o liberalismo democrático no qual se deve prestar contas no seu tempo).

Romper tetos é não caber em si mesmo. Se essa indignidade é inescapável, o melhor seria tirar um bocadinho da boca larga dos altos funcionários-fidalgos da República – parlamentares, juízes, procuradores e outros nobres que se locupletam com nossa liberal antidemocracia saudosa de absolutismo – e dar a sobra para os mais pobres. Isso seria um decente prestar conta do tempo. Sairíamos do “mais ou menos” para, como Robin Hood, tirar dos afortunados por parentesco eleitoreiro e compadrio, para dar o que os miseráveis precisam. Essa é a lógica infalível da igualdade como valor.

O “mais ou menos” denuncia o plano dos escroques para comprar votos. Não se trata de pobres, mas de garantir privilégios... Os fidalgos deveriam tirar dos seus bolsos em vez de teorizar hipocritamente sobre a oposição entre mercado e sociedade, uma distinção que Karl Polanyi dissolveu no seu livro The Great Transformation, em 1944. Ali, o autor revela que, sem estado, não haveria mercado, moeda ou teto de gastos. Mas, obviamente, haveria familismo e todos os costumes que eu tenho denunciado na minha obra.

Se o mercado é autorregulado, a sociedade deveria ser igualmente equilibrada. No Brasil não há apenas má regulagem do mercado. Aqui, Estado e sociedade sempre foram controlados pelos “donos do poder”. O que hoje vemos, é a revolução da opinião pública demandando coerência mínima entre gastos com altos salários dos picaretas e controle dos dinheiros eleitorais que são, tal como o Estado, domínios da estrutura social. Aqui, o projeto é de nada regular porque tudo seria regulado.

Não se trata de nobremente escolher entre finanças e pobreza. Trata-se de coibir uma compra eleitoral e de fazer justiça ao povo brasileiro.

*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’

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