quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Zeina Latif - Governos que ferem instituições

O Globo

Os presidentes Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro colocaram em xeque balizadores fiscais como LRF e teto de gastos

Os marcos institucionais dos países visam a delimitar a ação dos indivíduos, de forma a afastar atitudes oportunistas que prejudiquem a coletividade, por exemplo, atrapalhando o crescimento sustentado.

Na economia, um exemplo é o regime de metas de inflação — um mecanismo que facilita o trabalho do Banco Central no controle inflacionário, desde que seu compromisso com o regime seja reafirmado repetidamente. Caso o BC sistematicamente descumpra as metas, a erosão de sua credibilidade demandará taxas de juros mais elevadas para conter a inflação adiante.

Outros marcos são as regras fiscais. As mais importantes são a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, e a regra do teto, de 2016. A primeira estabelece, basicamente, que novas despesas não podem ser criadas sem indicação de fonte de recursos e a segunda limita o crescimento dos gastos do governo.

O fato de haver bons arranjos institucionais não significa, porém, que serão efetivos, pois isso depende da qualidade dos governantes. Muitos não exercem a necessária autocontenção e partem para buscar brechas ou criar exceções nas regras do jogo.

Visam ao seu benefício eleitoral de curto prazo, geralmente de forma pouco transparente, o que enfraquece as instituições, trazendo prejuízos à coletividade no médio e longo prazo.

Na gestão Dilma, a LRF e o regime de metas foram severamente atacados, por conta dos abusos na área fiscal, que pressionaram a inflação. Como agravante, havia a percepção — correta ou não — de que o Executivo feria a autonomia do BC ao não permitir a necessária alta dos juros.

Diferentemente dos governos anteriores, que compreendiam que a independência do BC (mesmo que não prevista em lei) eleva a eficácia do regime de metas, contribuindo para os juros serem mais baixos ao longo do tempo. Ao final daquele governo, mesmo com a Taxa Selic em 14,25% ao ano e a economia em recessão, a inflação não cedeu. Saiu cara a aventura.

O desrespeito à LRF — as pedaladas foram apenas parte do problema — foi ruim para as contas públicas, para o trabalho do BC e para o jogo eleitoral, pois o aquecimento artificial da economia gerou vantagem indevida para a ex-presidente na campanha de 2014.

As instituições de controle ou tardaram a reagir, como o Tribunal de Contas da União, ou decidiram não tumultuar o quadro político, como o Tribunal Superior Eleitoral.

No governo Temer, veio a correção de rumos, e a inflação baixa abriu espaço para a saudável redução da meta em direção aos parâmetros mundiais. Houve avanço institucional.

A história se repete. O governo Bolsonaro promove retrocesso ao desrespeitar a regra do teto, senão formalmente, o seu espírito. Abusa-se da cláusula de escape que permite gastos em situação não esperada e, agora, pretende mudar a Constituição para flexibilizar a regra.

A razão é menos nobre do que parece, por várias razões: o Auxílio Brasil não vai além de 2022; o rombo no teto seria de R$ 98 bilhões, segundo Marcos Mendes, mais que o dobro do recurso extra necessário para o programa social, pois inclui benesses como as emendas do relator; e não há medidas compensatórias de contenção de gastos. De quebra, eleva-se o risco inflacionário e prejudica-se o mercado de trabalho, ambos penalizando os mais vulneráveis.

A ironia é que foi o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que agora patrocina o furo do teto, quem deu andamento ao projeto de autonomia do BC. Aprovada a matéria, celebrou: “Um sinal claro de que o Brasil está avançando em sua governança e previsibilidade”.

Ao final, palavras vazias, pois os gastos em excesso ferem, na prática, a independência do BC, pois reduzem sua capacidade de combater a inflação, e a almejada previsibilidade se esvai. Sabe-se lá qual será a taxa de inflação no ano que vem e em um eventual segundo mandato de Bolsonaro. O precedente aberto na PEC Emergencial se materializa agora. O que mais virá adiante?

Alguns criticam a regra do teto por não sobreviver a pressões políticas.Essa crítica não procede. Mesmo regras boas sucumbem diante de governantes irresponsáveis. Não há blindagem perfeita. A julgar pelo andar da carruagem, não se compromete apenas o teto, mas também a eficácia e a credibilidade do regime de metas. A reação do BC precisa ser enérgica para evitar o pior.

Insistimos em repetir erros do passado. Com a palavra, os órgãos de controle.

 

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