Correio Braziliense
O segundo turno das eleições opõe, de um lado,
o domínio político do governo Bolsonaro e, de outro, a “direção intelectual e
moral” da sociedade protagonizada pela oposição liderada por Lula
Quase todo mundo já ouviu falar que “A
guerra é a continuação da política por outros meios”, conceito do estrategista
prussiano Carl Von Clausewitz (1790 – 1831), autor do famoso tratado militar Da
Guerra, publicado em 1832 e estudado até hoje nas academias militares. Segundo
ele, trata-se de “um ato de violência destinado a forçar o adversário a se
submeter à nossa vontade”. A Batalha de Valmy, ocorrida em 1792 — na qual o
exército revolucionário francês, comandado pelos generais Charles François Dumouriez
e por Etienne Christophe, conseguiu vencer os exércitos prussiano e austríaco
—, mudara os conceitos militares.
O surgimento de um exército popular e nacionalista, que depois viria a se transformar numa grande máquina de guerra de Napoleão Bonaparte, tornou obsoletos os exércitos aristocráticos das monarquias europeias, muitos dos quais formados por mercenários. A partir de então, a integração entre política e guerra pautou todos os conflitos, da Guerra Franco-Prussiana de 1870 até a carnificina da Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914.
“A guerra, então, é apenas um verdadeiro
camaleão, que modifica um pouco a sua natureza em cada caso concreto, mas é,
também, como fenômeno de conjunto e relativamente às tendências que nela
predominam, uma surpreendente trindade em que se encontra, antes de mais nada,
a violência original de seu elemento, o ódio e a animosidade, que é preciso
considerar como um cego impulso natural, depois, o jogo das probabilidades e do
acaso, que fazem dela uma livre atividade da alma, e, finalmente, a sua
natureza subordinada de instrumento da política por via da qual ela pertence à
razão pura”, resumiu Clausewitz (Da Guerra. São Paulo: Editora Martins Fontes,
2010).
Os conceitos clássicos de guerra de posição
e guerra de movimento, por outro lado, na direção contrária, seriam
incorporados à teoria política pelo marxista italiano Antônio Gramsci (1891
-1937), em seus Cadernos do cárcere (Boitempo), ao analisar o Risorgimento
italiano, o processo de unificação da península e a construção de um moderno
Estado nacional. Esse processo se estendeu de 1848 a 1871, liderado pelo
Piemonte, no Norte da Itália. Gramsci destacou a hegemonia exercida no
Risorgimento pelo partido dos moderados do Piemonte, liderado pelo conde de
Cavour e pelo rei Vittorio Emanuele II, bem como o papel subalterno do Partito
d’Azione, de Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi.
“Uma classe é dominante em dois modos, isto
é, ‘dirigente’ e ‘dominante’. É dirigente das classes aliadas e dominante das
classes adversárias. Por isso, já antes da chegada ao poder, uma classe pode
ser ‘dirigente’ (e deve sê-lo); quando chega ao poder torna-se dominante, mas
continua a ser ‘dirigente'”, explicou Gramsci, que viria a destacar: a
supremacia de um grupo se manifesta como “domínio” e como “direção intelectual
e moral”.
Os moderados do Piemonte formaram um “bloco
nacional sob sua hegemonia”, que se revelou muito eficaz sob a direção de
Cavour. Eram intelectuais, políticos, proprietários, industriais e
comerciantes, o que permitiu a formação espontânea de uma “identidade de
representantes e representados”. Essa é a gênese do conceito gramsciano de
hegemonia, que foi plenamente incorporado à ciência política moderna e
transbordou da literatura marxista.
Domínio e direção
Se aplicarmos esses conceitos à atual
disputa eleitoral entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o
presidente Jair Bolsonaro, o segundo turno das eleições opõe, de um lado, o
domínio político do governo Bolsonaro e, de outro, a “direção intelectual e
moral” da sociedade protagonizada pela oposição liderada por Lula. Quem
conseguir juntar domínio, pela via eleitoral, e direção, exercendo o poder,
governará o país pelos próximos quatro anos. O chefe do Executivo já tem o
domínio, mas perdeu a direção intelectual e moral, que tenta recuperar.
Os conceitos de “guerra de posição” e
“guerra de movimento” são muito mais complexos na política do que nas guerras
propriamente ditas. “Na política, subsiste a guerra de movimento enquanto se
trata de conquistar posições não decisivas e, portanto, não se podem mobilizar
todos os recursos de hegemonia do Estado; mas quando, por uma razão ou por
outra, essas posições perderam seu valor e só aquelas decisivas têm
importância, então se passa à guerra de assédio, sob pressão, difícil, em que
se exigem qualidades excepcionais de paciência e espírito inventivo”, destacou
Gramsci, que também chamou atenção para a “guerra subterrânea”, como a que
Gandhi travou contra os britânicos na independência da Índia.
Por exemplo, as palavras “animosidade, ódio
e violência” sublinhadas por Clausewitz são cada vez mais citadas no noticiário
e análises sobre o segundo turno das eleições. Na “guerra subterrânea” das
redes sociais, cujo objetivo é aumentar a rejeição do adversário, estão
sedimentando um clima de disputa que ameaça evoluir da política para a guerra
propriamente dita, se depender de certas afirmações de Bolsonaro sobre as urnas
eletrônicas, que sugerem a intenção de “melar” as eleições, caso Lula seja
vitorioso.
Além dos ataques recíprocos na propaganda
oficial de campanha, com objetivo de aumentar a rejeição alheia, Lula e
Bolsonaro intensificaram suas agendas de campanha, numa “guerra de movimento”.
Bolsonaro foi ao Santuário Nacional de Aparecida, em São Paulo, ontem, um
reduto católico que lhe é hostil. Enquanto isso, uma “motociata” de motoboys
abria caminho para visita de Lula ao Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, com
o objetivo de mobilizar os morros cariocas para reverter a vantagem de
Bolsonaro no asfalto.
Os atos ocorreram no contexto geral de uma
“guerra de posições” no Sudeste, na qual as estruturas de poder consolidadas no
primeiro turno podem mudar a correlação de forças eleitorais no segundo. É o
que explica a visita de Lula a Belford Roxo, na Baixada Fluminense, onde perdeu
a eleição, ou o encontro de Bolsonaro com o governador Romeu Zema, em Belo
Horizonte, no esforço de reverter a vantagem do petista em Minas. A eleição
está sendo decidida em São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, como “guerra de
posições”.
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