O Globo
Recomenda-se não fazer ‘gaslighting’ com
patriotas, já que a transição será demorada, e ditadura e golpe não devem sair
do seu vocabulário tão cedo
A editora do dicionário Merriam-Webster
escolheu gaslighting como “palavra do ano” de 2022 nos Estados Unidos.
Talvez gaslaite tenha de esperar um pouco
até ser admitida no Aurélio ou no Houaiss, mas até lá podemos nos valer do
idioma pátrio. Trata-se da boa e velha manipulação psicológica — a
desestabilização emocional do outro em benefício próprio. Apesar de não nos
faltar gente craque no assunto (políticos, gurus, pastores, maridos), a
expressão não é tão popular por aqui. Outras palavras representariam melhor
nosso ano, pelo uso intensivo ou por terem sofrido mutação genética. Minhas
candidatas:
Auditável: adj. Aquilo que se possa
contar manualmente tantas vezes quantas forem necessárias, até que seja obtido
um resultado favorável. Ex.: voto auditável;
Complexo (abrev.: CPX): s.m. Conjunto de representações de forte valor afetivo, que leva indivíduos com baixa capacidade para lidar com questões complexas a crer que todo morador de favela seja traficante, assaltante ou meliante. Presente em Complexo de Castração (que envolve inveja do pênis, até quanto ao tamanho) e Complexo de Inferioridade, passando pelos Complexos do Alemão, da Maré, da Penha, da Serrinha;
Ditadura: s.f. Qualquer decisão que vá
contra os meus interesses. Ex.: ditadura da toga;
Eleição: s.f. Processo de escolha de um mal
aparentemente menor, com direito a guinada radical a cada quatro anos — ou
recall a qualquer momento, por meio de impítimã (vide Golpe);
Golpe: s.m. Impedimento legal de uma
presidenta (2016). Bicho-papão; aquilo que Bolsonaro daria e acabou não dando —
mas calma que ainda faltam 24 dias (uso e abuso entre 2019 e 2022). Compromisso
de os apoios recebidos para formação de uma frente ampla com vista à vitória
eleitoral (vide Eleição) se traduzirem em compartilhamento efetivo de poder
(uso previsto a partir do anúncio do novo ministério);
Patriota: adj. e s. de dois gêneros. Quem,
por suposto amor à pátria, se presta a patriotadas. Bucha de canhão; boi de
piranha. Cidadã(o) cuja boa-fé é explorada pelo governante de turno, que
precisa de resgate urgente, antes que seja atropelado, perca o emprego ou pegue
um resfriado;
Pendrive: s.m. Dispositivo portátil para
armazenamento de dados que não podem, de jeito nenhum, ser enviados por e-mail
ou compartilhados na nuvem, sob pena de o portador não ter desculpa para deixar
apoiadores (vide Patriota) na chuva e ir passear no Catar;
Secreto: adj. Aquilo que todo mundo sabe o
que é, a quem serve, para o bolso de quem vai. Ex.: orçamento secreto;
Teto: s.m. O que não tem limite;
infindo. Poço sem fundo, só que ao contrário. Ex.: teto de gastos;
Transição: s.f. Passagem traumática e
abrupta de uma condição a outra, envolvendo centenas de pessoas batendo cabeça;
Urna: s.f. Recipiente onde se depositam
votos, sugestões ou cinza dos mortos. Segundo alguns (vide Patriota), espécie
domesticada de buraco negro, com visor e teclado.
Recomenda-se não fazer gaslighting com patriotas, já que a transição será demorada, e ditadura e golpe não deverão sair do seu vocabulário tão cedo. Tomara que a palavra de 2023 seja “Ufa!”, interj. de alívio.
Um comentário:
Certas pessoas invertem até o significado real das palavras.
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