sábado, 3 de dezembro de 2022

Eduardo Affonso - As palavras do ano

O Globo

Recomenda-se não fazer ‘gaslighting’ com patriotas, já que a transição será demorada, e ditadura e golpe não devem sair do seu vocabulário tão cedo

A editora do dicionário Merriam-Webster escolheu gaslighting como “palavra do ano” de 2022 nos Estados Unidos.

Talvez gaslaite tenha de esperar um pouco até ser admitida no Aurélio ou no Houaiss, mas até lá podemos nos valer do idioma pátrio. Trata-se da boa e velha manipulação psicológica — a desestabilização emocional do outro em benefício próprio. Apesar de não nos faltar gente craque no assunto (políticos, gurus, pastores, maridos), a expressão não é tão popular por aqui. Outras palavras representariam melhor nosso ano, pelo uso intensivo ou por terem sofrido mutação genética. Minhas candidatas:

Auditável: adj. Aquilo que se possa contar manualmente tantas vezes quantas forem necessárias, até que seja obtido um resultado favorável. Ex.: voto auditável;

Complexo (abrev.: CPX): s.m. Conjunto de representações de forte valor afetivo, que leva indivíduos com baixa capacidade para lidar com questões complexas a crer que todo morador de favela seja traficante, assaltante ou meliante. Presente em Complexo de Castração (que envolve inveja do pênis, até quanto ao tamanho) e Complexo de Inferioridade, passando pelos Complexos do Alemão, da Maré, da Penha, da Serrinha;

Ditadura: s.f. Qualquer decisão que vá contra os meus interesses. Ex.: ditadura da toga;

Eleição: s.f. Processo de escolha de um mal aparentemente menor, com direito a guinada radical a cada quatro anos — ou recall a qualquer momento, por meio de impítimã (vide Golpe);

Golpe: s.m. Impedimento legal de uma presidenta (2016). Bicho-papão; aquilo que Bolsonaro daria e acabou não dando — mas calma que ainda faltam 24 dias (uso e abuso entre 2019 e 2022). Compromisso de os apoios recebidos para formação de uma frente ampla com vista à vitória eleitoral (vide Eleição) se traduzirem em compartilhamento efetivo de poder (uso previsto a partir do anúncio do novo ministério);

Patriota: adj. e s. de dois gêneros. Quem, por suposto amor à pátria, se presta a patriotadas. Bucha de canhão; boi de piranha. Cidadã(o) cuja boa-fé é explorada pelo governante de turno, que precisa de resgate urgente, antes que seja atropelado, perca o emprego ou pegue um resfriado;

Pendrive: s.m. Dispositivo portátil para armazenamento de dados que não podem, de jeito nenhum, ser enviados por e-mail ou compartilhados na nuvem, sob pena de o portador não ter desculpa para deixar apoiadores (vide Patriota) na chuva e ir passear no Catar;

Secreto: adj. Aquilo que todo mundo sabe o que é, a quem serve, para o bolso de quem vai. Ex.: orçamento secreto;

Teto: s.m. O que não tem limite; infindo. Poço sem fundo, só que ao contrário. Ex.: teto de gastos;

Transição: s.f. Passagem traumática e abrupta de uma condição a outra, envolvendo centenas de pessoas batendo cabeça;

Urna: s.f. Recipiente onde se depositam votos, sugestões ou cinza dos mortos. Segundo alguns (vide Patriota), espécie domesticada de buraco negro, com visor e teclado.

Recomenda-se não fazer gaslighting com patriotas, já que a transição será demorada, e ditadura e golpe não deverão sair do seu vocabulário tão cedo. Tomara que a palavra de 2023 seja “Ufa!”, interj. de alívio.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Certas pessoas invertem até o significado real das palavras.