quinta-feira, 4 de abril de 2024

Malu Gaspar – O Supremo na arena

O Globo

Entre a Sexta-feira Santa e a Páscoa, o Supremo Tribunal Federal (STF) quase ampliou sem aviso o alcance do foro privilegiado — blindagem que dá status especial de julgamento a parlamentares, presidentes da República e outras autoridades. O julgamento foi parado por um pedido de vista do presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, mas deverá ser retomado na semana que vem.

A regra em vigor vem de 2018. Foi definida depois de meses de sessões exibidas pela TV Justiça, amplamente debatidas pela sociedade. Ela diz que só devem ser julgados no Supremo crimes cometidos por políticos no exercício do mandato e em razão dele. Do contrário, os casos são remetidos à primeira e à segunda instâncias, a depender do status do investigado.

Na época, a decisão foi celebrada por reduzir a quantidade de políticos privilegiados e evitar o acúmulo de processos no STF, além de travar o vaivém de processos que mudavam de foro conforme o político mudasse de cargo e, muitas vezes, prescreviam sem ser julgados.

Com a nova dinâmica, passaram a ficar na Corte só os casos de crimes cometidos no exercício do mandato. Os outros em tese deveriam ficar nas instâncias de origem para ser concluídos e, uma vez que desciam de prateleira, não deveriam subir mais.

Os políticos, porém, estrilaram. Viviam-se ainda os efeitos da Operação Lava-Jato, e o STF costumava avalizar decisões dos juízes de instâncias inferiores. Mas os tempos mudaram, os alvos dos processos mudaram, e o próprio tribunal mudou.

Hoje quem está na mira da Justiça é gente como Jair Bolsonaro e sua turma de golpistas. Ou Chiquinho Brazão, acusado de mandar matar Marielle Franco em conluio com o irmão, Domingos. E não só eles, mas outros que não têm foro privilegiado — como as centenas de golpistas do 8 de janeiro e até o adolescente que invadiu o Twitter da primeira-dama — estão sob a batuta do temido Alexandre de Moraes.

Há, aí, um problema real que a maioria finge não ver: o que fazer com quem não tem prerrogativa de foro, mas está pendurado no Supremo. E há o desespero de políticos que sabem não ter chance de absolvição se forem julgados no STF, por isso tentam tirar seus casos da Corte.

Foi nesse contexto que o ministro Gilmar Mendes decidiu aproveitar o caso do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA) para tentar ampliar o alcance do foro. Zequinha foi acusado de tomar 5% dos salários dos servidores de seu gabinete quando era deputado federal, em 2013. Desde então, elegeu-se vice-governador do Pará, quando seu caso saiu do Supremo, e só em 2019 voltou ao Congresso, agora como senador. Zequinha quer que seu processo, hoje na primeira instância, volte para o STF.

Em seu voto, Gilmar afirma que as idas e vindas levam à impunidade. Por ele, crimes cometidos por autoridades com foro devem continuar no Supremo mesmo depois do fim do mandato. No subtexto desse argumento está a ideia de que só o STF é competente para julgar crimes de políticos.

Mas um levantamento da Fundação Getúlio Vargas mostrou que, entre 2011 e 2016 — antes, portanto, de o mecanismo atual começar a valer —, 68% das ações penais concluídas prescreveram ou foram repassadas a instâncias inferiores. Só em 0,74% houve condenação.

Não há medidas confiáveis sobre quanto melhorou a taxa de solução ou diminuiu a impunidade. Mas é certo que a mudança proposta por Gilmar não é pacífica, tanto que o caso foi para o plenário virtual, em que os ministros só depositam seus votos numa plataforma digital, sem TV Justiça ou escrutínio público.

A reação está em curso. Bolsonaristas e integrantes do Centrão já se mobilizam no Congresso para barrar a proposta. Entendem que ela é fruto de um casuísmo destinado aumentar os poderes do Supremo e sufocar o Parlamento. Sabem que os primeiros afetados pela mudança são os bolsonaristas em geral, mas não querem correr o risco de se ver na mesma posição.

Também não deixa de ser casuísmo que políticos que sempre lutaram para ser julgados no STF agora estejam correndo do tribunal. Mas é muito perigoso a Corte seguir a mesma lógica.

A história recente já mostrou o que acontece quando juízes resolvem ser políticos. Nessa arena, os profissionais são outros. Não à toa, quem visita o futuro presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), ouve que ele tem apenas uma certeza sobre o que deverá ocorrer na próxima legislatura: um impeachment de ministro do Supremo.

Pode até ser bravata, uma vez que nem mesmo o todo-poderoso Alcolumbre pode prever uma coisa dessas. Mas diz muito sobre o campo minado onde os ministros do STF estão entrando.

 

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