quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O golpe e as quatro linhas - Malu Gaspar

O Globo

O plano revelado pela operação que prendeu nesta semana um general, um coronel, dois majores e um policial federal acusados de tramar um golpe de Estado no final de 2022 pode parecer delirante — e é. Não quer dizer que não deva ser levado a sério.

A história do submundo militar está cheia de tramas ousadas e amalucadas. Se tivesse ocorrido de forma isolada, a viagem da tropa do general Olímpio Mourão de Juiz de Fora ao Rio de Janeiro teria sido uma quartelada sem maiores consequências, e não o ato inicial do golpe de 1964.

Anos depois, quando o fim da ditadura era questão de tempo, outro grupo de militares desembestados planejou detonar bombas durante um show do Dia do Trabalhador, no Riocentro. A intenção era incriminar a oposição e sabotar a redemocratização, mas a única vítima fatal foi um sargento que estava no carro onde um dos artefatos explodiu.

Diante desse histórico, não surpreende que uma facção fardada tenha trabalhado até o final do governo Bolsonaro para impedir a posse de Lula — mesmo que, para isso, fosse necessário sequestrar Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, e envenenar o presidente e o vice-presidente eleitos.

A trama detalhada em documentos apreendidos pela Polícia Federal, que mapeou ainda mensagens, ligações e deslocamentos, não deixa dúvida sobre a disposição desses golpistas. Mas ainda há perguntas importantes no ar. E as respostas, além de necessárias, podem ser decisivas para o futuro da nossa democracia.

A investigação sugere que Jair Bolsonaro e seu vice na chapa à reeleição, Walter Braga Netto, sabiam o que se passava e podem ter até autorizado a execução do plano.

Em etapas anteriores do inquérito sobre a trama golpista, Braga Netto foi flagrado incentivando os golpistas e disseminando fake news sobre o comandante do Exército que se recusava a aderir ao golpe, Freire Gomes, e sobre o futuro comandante de Lula, Tomás Paiva.

Segundo a PF, porém, Braga Netto fez bem mais que isso: também abrigou em sua casa uma das reuniões de planejamento dos golpistas, de que participou. Mas o relatório não explica como os investigadores chegaram a essa conclusão.

Também ainda não está claro por que, se consideram que ele teve participação tão relevante na trama, os delegados não pediram a prisão de Braga Netto, com os demais.

A PF também constatou que o grupo chegou a tomar posição ao longo do trajeto percorrido por Moraes, falando em códigos militares.

Mas, embora os investigadores digam que se tratava de uma operação para sequestrar o ministro, ainda não está claro se pode ter sido apenas monitoramento. A ação foi abortada de uma hora para outra, mas ainda é mistério por que isso aconteceu e quem deu a ordem.

Falta definir, também, o papel de Bolsonaro na trama. As informações recolhidas pela PF mostram que o general Mário Fernandes não só imprimiu parte dos planos para o golpe dentro do Palácio do Planalto, como tinha acesso livre ao Alvorada, onde o presidente se enclausurou depois da derrota.

Num áudio enviado já tarde da noite do dia 8 de dezembro de 2022 a Mauro Cid, o ajudante de ordens de Bolsonaro que se tornou delator da PF, o general relata a conversa que teve horas antes com o então presidente:

“Ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas, porra, aí na hora eu disse, pô presidente, mas quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades”.

Inconformado, Fernandes pede a Cid que reforce com o chefe a necessidade de agir rápido para que o pessoal acampado nas portas dos quartéis não esmorecesse.

No dia seguinte, Bolsonaro surgiu na frente do Alvorada com Braga Netto e disse: “As decisões, quando são exclusivamente nossas, são menos difíceis e menos dolorosas. Mas, quando elas passam por outros setores da sociedade, são mais difíceis e devem ser trabalhadas. Se algo der errado, é porque eu perdi minha liderança. Eu me responsabilizo por meus erros. Mas peço a vocês que não critiquem sem ter certeza absoluta do que está acontecendo”. Fernandes comemorou: “ Que bacana que ele aceitou aí o nosso assessoramento”.

Tudo o que já veio à tona mostra quanto estivemos perto de um golpe depois da eleição de 2022. O relatório final da PF amarrando as pontas soltas está previsto para os próximos dias. Se cumprir o seu propósito, vai ficar faltando apenas que Moraes se declare impedido para relatar o inquérito sobre um crime de que era um dos alvos. O que não pode acontecer é abrir brecha aos golpistas para seus advogados alegarem falta de provas e pedirem arquivamento ou anulação de processos — ou mesmo para que se volte a falar em anistia.

 

3 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

É muita sujeira!

Mais um amador disse...

" O que não pode acontecer é abrir brecha aos golpistas para seus advogados alegarem falta de provas e pedirem arquivamento ou anulação de processos — ou mesmo para que se volte a falar em anistia. "

Perfeito !

Anônimo disse...

Excelente coluna! E quem acha que cabeça de militar é normal e previsível? Uma boa parte deles é maluca e/ou violenta... Treinam com armas, se familiarizam com elas, mas a violência interna que carregam dentro deles é descontrolada em muitos casos. Jair Bolsonaro é só o caso mais evidente e exemplar, até didático!